Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case – Review
Agatha Christie é muito provavelmente o maior nome da literatura no que se refere a tramas investigativas, crimes misteriosos e reviravoltas inesperadas, e algumas de suas quase 40 obras estão dentre as mais celebradas e reconhecidas mundialmente, fato que obviamente não demorou para que outras mídias percebessem o potencial. Não por acaso, enquanto escrevo esta análise, chega aos cinemas o filme A Noite das Bruxas, nova aventura dirigida e estrelada por Kenneth Branagh no papel do detetive belga Hercule Poirot, que dá continuidade episódica aos bem sucedidos Assassinato no Expresso Oriente (2017) e Morte no Nilo (2022). Mas o objeto da análise aqui, naturalmente, é outra: o jogo Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case, sequência do surpreendente e pouco conhecido Agatha Christie – Hercule Poirot: The First Cases, de 2021.
Produzido pela Blazing Griffin e distribuído pela Microids, o game nos reapresenta uma versão um pouco mais jovem de Poirot em uma trama que se inicia na viagem de navio em que ele tem como missão escoltar uma obra de arte ao seu destino, momento este em que somos apresentados a um grupo bastante peculiar de pessoas que, mais tarde, estarão dentre os principais personagens – e suspeitos, claro – do tal Caso de Londres que dá nome ao jogo. De forma muito sagaz, este prólogo traz um pequeno crime sem grandes desdobramentos imediatos que não só nos permite conhecer alguns dos NPCs mais importantes do jogo, como nos incita a entender as mecânicas principais que o jogo nos exigirá mais adiante, quando a coisa ficar séria de verdade. Para os veteranos, um lembrete e para os novatos, nada muito complicado de se absorver.
Um dos maiores charmes de tramas desta natureza é que, por jamais escalarem para algo grandioso que envolva conflitos imponentes e coisas do tipo, tudo é mais contido, se aproveita de detalhes e peculiaridades, sem qualquer pretensão gananciosa de que salvemos o mundo. Mesmo o maior expoente do gênero, Sherlock Holmes e toda a sua lore, jamais atravessa esse limiar, uma armadilha tão sedutora para quem busca cada vez mais gravidade – e com isso, mais interesse de público – e ações megalomaníacas. Poirot não é James Bond, não é Ethan Hunt, assim como Tintim não é Indiana Jones, o que pode nos dar alguma dica que os mais importantes personagens vindos da Bélgica deixam as aventuras hypadas para outros, enquanto estes fazem do seu universo particular a coisa mais importante do mundo. E é exatamente a escala contida a alguns poucos mapas que torna tudo tão interessante.
O roubo com o qual devemos lidar nos dez capítulos organizados estruturalmente lineares pela narrativa é somente o estopim para uma investigação que vai envolver desde membros da alta sociedade londrina até artistas mal compreendidos, passando ainda por membros do clero, policiais mal humorados e até um gato encrenqueiro. Cada nova pista encontrada abre um leque de oportunidades inesperadas que mantém o interesse sempre alto pela próxima grande revelação. Como um jogo totalmente dependente dos pontos de virada, das conclusões mirabolantes (e nem sempre tão bem encadeadas assim) e das intuições elucidativas, é bastante tranquilizador dizer que The London Case é ainda mais instigante que o seu antecessor, o que garante revelações realmente inesperadas e um final pouco óbvio até mesmo para os padrões do gênero.
O ritmo da investigação, porém, pode não ser o desejado por uma parcela importante dos jogadores. Este é um jogo que evita a ação propriamente dita, o que pode se tornar cansativo para os mais agitados, algo que não é obviamente um problema em si dado que esta é exatamente a proposta de um jogo mais comedido e cadenciado. Nem sempre o próximo passo é óbvio, e será necessária uma dose bastante generosa de paciência para circular por entre as salas disponíveis e encontrar aquela pista que tinha ficado despercebida em um primeiro momento. Ainda assim, há algumas passagens que parecem embarrigar para além do ponto, como por exemplo ter que primeiro encontrar o mascote de um personagem mal humorado para aí sim ganhar a sua confiança para que ele lhe dê as respostas que você precisa. Nem sempre estas micro tramas paralelas fazem sentido para o todo, e mesmo que sejam funcionais para o desenvolvimento de personalidade de alguns dos seus suspeitos ou testemunhas, podem tornar o miolo da narrativa arrastada um pouco demais.
A dinâmica, por sua vez, também se mantém bastante sólida do início ao fim, intercalando diálogos com as pessoas que estão no local de interesse e a exploração destes ambientes atrás dos pequenos detalhes que podem nos contar tudo o que precisamos saber. Interagir com um ponto destacado pode, por exemplo, nos fornecer um item que será necessário em outra situação, como um cotonete molhado ou uma agulha torta, ou ainda uma série de pontos a serem observados que, juntos, dizem mais do que aparentam, como estranhos cacos de vidro caídos de um porta-retratos avariado ou marcas de agulha no braço de uma até então vítima de um incêndio acidental. Para o jogador, vale a máxima de fazer uma grande varredura em cada sala antes de seguir para a próxima, conversar com todas as pessoas disponíveis ali, mesmo que não aparentem qualquer relação com o assunto investigado. Todas as informações coletadas serão úteis.
Mais do que encontrar pistas, porém, é necessário fazer as deduções necessárias quando em posse de todas elas. A interface do jogo é dividida em duas grandes categorias, sendo a primeira um inventário que nunca chega a ser complexo demais já que ele só mantém os itens importantes para aquele capítulo onde estamos e é zerado no próximo. Já a segunda é o coração da experiência, que é composto basicamente por mapas mentais articulados pelo protagonista. Primeiro, acumulando fatos encontrados, como por exemplo a evidência de que alguém vende pinturas falsificadas ou que na cena do crime havia restos de tinta azul. Depois, nos é necessário criar relações entre dois dados isolados. Por exemplo, se há venda de obras falsas e uma personagem tem em seu quarto restos da mesma tinta utilizada para o crime, logo se cria uma ponte – literalmente puxando um fio entre um ponto e outro – concluindo que ela está, no mínimo, envolvida com a falcatrua. Uma conexão astuta na teoria, mas bastante prática e intuitiva em termos de jogabilidade.
Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case não abre mão de artifícios de condução muito bem-vindos mesmo para quem está entendendo pouco do que se passa. O mais óbvio deles é que, ao eleger um assistente, Poirot basicamente tem com ele conversas de exposição de suas conclusões, quase que um resumo de tudo o que descobriu. Ao verbalizar seus pensamentos e decisões, ele sempre nos deixa informados do que está acontecendo, além de dar a dica para o que fazer a seguir. Nosso esperto herói ainda tem pensamentos internos bem diretos consigo mesmo, mas o interlocutor é uma boa estratégia para que o jogo sintetize o que sabemos e o que precisamos descobrir.
As legendas de cada item ou dedução também são muito úteis e, na dúvida, ainda há uma listinha de afazeres sempre disponível para quem estiver perdido. Confesso que nem sempre há um direcionamento mais compreensível ou óbvio para quem está retomando a jogatina de um dia para o outro, e muitas vezes a ordem do que está listado não é a mesma que temos que adotar, mas ainda assim, há um bom equilíbrio entre termos um direcionamento claro e precisarmos procurar nossa próxima tarefa por nós mesmos. Mas sem se mostrar arrogante, o game sempre dá um jeito de nos dar uma pista para nunca nos deixar enroscados por muito tempo.
A visão isométrica presente na exploração é, sem dúvidas, a melhor forma de termos o melhor ponto de vista para aquilo que precisamos fazer, olhando para o todo, notando coisas que podem ser úteis. Girar a câmera de 45 em 45 graus também é útil o suficiente, porque se não nos dá liberdade total para a colocarmos exatamente no ângulo desejado, mostra tudo o que precisamos ver, do jeito que deve ser visto. Esse olhar se alterna com ângulos estáticos (alguns deles com um enquadramento duvidoso) e pré-estabelecidos em cada diálogo, que mesmo trazendo alternativas, não dá muitas opções de fala, o nos permite basicamente mudar só a ordem daquilo que temos a dizer, algo que não altera o resultado. É um artifício muito leviano de interação em diálogos, mas não chega a se mostrar um problema em momento algum, só nos ajudando a manter o interesse nas falas. Mas seria interessante ter a opção de fazer perguntas secundárias, obter respostas dúbias ou até fazer deduções inconsistentes, tudo para que tenhamos a sensação de que o progresso, quando conquistado, é mais genuíno e tem nossa participação de fato.
O que mais pode incomodar nessa questão estética é a qualidade das animações e dos modelos gráficos. Se os ambientes são realmente muito bem arranjados, densos em cenografia, valorosos em reconstituição histórica, e usam até mesmo recursos de ray tracing para reflexos mais pomposos e valorização de um interessante sistema de iluminação, os modelos humanos são simplórios e muitas vezes até um pouco medonhos. As animações faciais são quase nulas, se aproximando de uma textura que lembra a de bonecas (mal) articuladas mexendo minimamente os lábios (e as vezes nem isso), enquanto que o gestual é, quando muito, robótico e pouquíssimo natural. Isso significa que, em suma, a direção de arte é bastante competente, mas a expressão técnica do que foi planejado é bastante questionável. Destaque para os olhos da maioria das personagens que se assemelham aos piores momentos de jogos que acabam ocasionando memes, que muitas vezes sequer estão direcionados ao ponto de interesse. Ainda que se compreenda o escopo da produção, não deixa de ser um detalhe um pouco assustador.
Essa mesma artificialidade está presente também nas interpretações dos personagens, com vozes pouco expressivas, sotaques caricatos e falas que mais parecem declamações de um texto claramente escrito para ser lido e não ouvido. A redação é convincente e a localização para o português brasileiro em legendas é muito bem feita, mas a atuação passa do limite da canastrice. Chega um momento onde esse comportamento antinatural se torna uma marca da produção, mas em momento algum me senti envolvido com qualquer que seja o personagem exatamente por essa impossibilidade deles parecerem humanos, parecerem vivos. Não criar vínculos emocionais, para uma investigação criminal, talvez seja até uma vantagem, mas não sei o quanto ela é intencional ou mesmo desejável. Este é, de longe, o aspecto do jogo que menos consigo apreciar, até por entender que a interatividade limitada é realmente parte do gênero, enquanto o projeto artístico não deveria ser.
Como um todo, Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case segue fiel aos padrões estabelecidos pelo seu antecessor no que se refere à interatividade, cadência narrativa e até mesmo às questionáveis escolhas estéticas, mas consegue melhorar praticamente todos esses aspectos, cada qual a sua maneira. A história, sem devaneios mirabolantes de grandiosidade, é mais interessante e melhor contada pelos olhos de nosso intrépido detetive, devendo ao anterior somente o aspecto de relacionamentos mais sofisticados entre os NPCs. Por sua vez, as mecânicas de influência no ambiente são básicas, mas suficientes para os objetivos do game. As ferramentas de coleta de informações e dedução de evidências são interessantes, e a trama é realmente engajadora, entregando um desenvolvimento bem articulado e um desfecho muito satisfatório, o que é exatamente o que os fãs de um bom mistério poderiam esperar enquanto desafio para suas células cinzentas.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Microids.
Veredito
Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case segue os padrões de seu antecessor e entrega uma ótima trama de mistério digna das melhores obras da autora. Com mecânicas simples e um visual instável, porém, suas melhores qualidades estão na forma como a investigação é conduzida e nas reviravoltas que só as boas histórias do gênero conseguem proporcionar.
Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case follows the footsteps of its predecessor and delivers an excellent mystery worthy of the author’s best works. With simple mechanics and an unstable look, however, its best qualities lie in the way the investigation is conducted and in the twists and turns that only good stories in this genre can provide.
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