Por muito tempo, quando alguém falava sobre jogos de captura de monstrinhos para batalha, eram poucas as possibilidades no mercado e nenhuma delas se mostrou tão capaz de agregar fãs quanto o lendário Pokémon. Mesmo iniciativas que acabaram ganhando uma identidade própria, como Digimon, tiveram poucos momentos onde realmente chegaram a ameaçar a supremacia da franquia exclusiva das plataformas Nintendo, isso até ouvirmos sobre Temtem, sobre o qual discorremos bastante aqui no site, que pretendia emular muito do que já era consagrado e, ao mesmo tempo, encontrar soluções para problemas dos quais a comunidade sempre se queixou. Esta realidade, assim, está se mostrando em evolução, e ainda que Pokémon continue reinando absoluto, há outros players no mercado.
A captura de criaturas selvagens flertou com outros gêneros e, não faz muito tempo, tivemos ótimas produções, como Monster Sanctuary (que trazia um elemento de metroidvania) e Monster Harvest (que investia pesado no subgênero de cultivo e gestão de fazenda), e até mesmo a duologia Ni No Kuni, que abusa do modelo de RPG oriental, todos tão inusitados e bem sucedidos conceitualmente que pareciam possibilidades de evolução da fórmula clássica. Agora, chega ao mercado uma obra com o DNA brasileiro produzido pela Cadabra Games, que busca nas raízes dos jogos de exploração de masmorras uma nova abordagem que mesmo parecendo, inicialmente, um Diablo misturado com Pokémon, tem muitas características interessantes para transformar suas referências em uma identidade própria.
No mundo de Gaterdrik, conhecemos Lukha, o jovem adorador – o nome original do game, para nós falantes do português, é muito significativo – com algumas memórias confusas que descobre ter dentro de si uma entidade milenar e muito poderosa chamada Draknar. Ele descobre que, há muito tempo, esta divindade foi traída pelo próprio filho, Ixer, que o destruiu para usurpar a Essência Divina, uma força cósmica capaz de dar a seu possuidor um poder incomensurável. Antes de ser destruído, contudo, ele se funde ao garoto, que recebe a missão de retomar este item único no universo e restaurar o equilíbrio uma vez mais, já que as consequências desse evento cataclísmico estão afetando a tudo e a todos, como os animais que estão passando por um processo de corrupção que os torna violentos e perigosos para aqueles que os cercam.
Não demora para que Lukha encontre uma comunidade da qual pode fazer parte, que inicialmente não o leva tão a sério assim, mas que está sempre a disposição para ajudá-lo a evoluir, conquistar novos companheiros e, enfim, cumprir sua tarefa. Adore apresenta então sua estrutura básica com uma base fixa, um acampamento que funciona como hub central, de onde o nosso herói sempre parte para suas aventuras, local que também abriga alguns dos arquétipos mais tradicionais do gênero, como o comerciante, a guia (aquela que basicamente apresenta as novas missões a serem realizadas antes dos embates principais da história) e a cozinheira, que faz as vezes do clássico alquimista na elaboração de combinados que podem oferecer melhorias principalmente para a saúde do protagonista e seus acompanhantes. Há ainda neste local totens para a incorporação de runas e um santuário de cura para os monstrinhos convertidos.
Falando nas tais estrelas da produção, o sistema de captura e posterior utilização delas em batalhas tem suas similaridades com tudo aquilo que já vimos antes, sobretudo na lógica de enfraquecimento para facilitar o trabalho de conversão, mas se mostra essencialmente bem diferente na prática. Para conseguir pegar um deles, é necessário primeiro ter a posse de uma fagulha de energia chamada Partícula de Gaterdrik (que quando encontrada, ainda oferece como bônus uma melhoria temporária) e, com isso, iniciar um processo de purificação que demora um certo tempo dependendo da força do alvo. Também é necessário manter-se em um campo de visão enquanto o ritual não se finaliza para garantir uma conexão realmente válida e, aí sim, conquista-se um novo parceiro de viagem que poderá ser invocado para o combate contra outros agressores.
Nosso time principal pode ser composto de até quatro monstrinhos, de espécies diferentes ou não, divididos em classes, cujas habilidades são surpreendentemente distintas umas das outras, permitindo um alto nível de customização por parte do jogador para criar uma composição única e equilibrada para o seu tipo de abordagem. Com ataques corpo-a-corpo ou a distância, bem como habilidades de controle de multidões ou de modificação de ambiente, não surpreende que fiquemos desbravando as terras inóspitas deste reino só combinando tipos de ataques diferentes e verificando seus efeitos. Se nos primeiros minutos tudo parece muito simples, não demora para que a complexidade, no bom sentido, nos proporcione momentos intensos e muito agradáveis.
Uma das maiores distinções das maiores referências do gênero está no modelo do combate e da exploração. Ao contrário do sistema simétrico e por turnos que nos levam para um campo controlado, aqui tudo acontece em tempo real ao longo de masmorras labirínticas e independentes geradas proceduralmente, pelas quais procuramos por itens especiais, missões específicas da narrativa ou simplesmente por um pouco de ação e pilhagem. Com a visão isométrica por padrão, é nesse ponto onde o jogo lembra, ainda que se guardem as devidas proporções, uma dinâmica Diablo de avançar pelas fileiras inimigas lançando mão de ataques vorazes, só que ao invés da pancadaria direta, utiliza-se o seu time na ordem como o jogador desejar, individualmente ou em conjunto, em movimentos que convocam e recolhem cada membro a partir de uma barra de estamina.
Tudo parece bastante simples em um primeiro momento, e na prática realmente o é. Cada um dos quatro titulares da equipe está mapeado para um botão de ação do controle, sendo que pressionar o botão joga o sujeito no campo para que ele ataque automaticamente, e segurar o comando por alguns instantes o direciona para algum ponto de nossa escolha. Se inicialmente, por padrão, eles são invocados, aplicam um ataque e retornam, logo poderemos criar artifícios que aprofundam tais ações, as deixando ainda mais úteis e letais. É nesta customização refinada onde Adore brilha de verdade, pois o desempenho do conjunto depende de uma série de opções previamente articuladas.
A primeira delas é o sistema de sinergia, onde podemos utilizar artefatos que garantem vantagens pela combinação de dois ou mais indivíduos atuando colaborativamente. Você pode, por exemplo, atribuir uma característica extra (como dano aumentado ou ataque potencializado) para um ser mistique sempre que houver outro da classe nature atuando ao lado dele, ou pode ainda definir que ele ganhe recuperação de vida quando atacar em conjunto com um outro da classe beast. Essa mistureba se possibilidades pode até parecer complexa quando apresentada pela primeira vez, mas bastam duas ou três mexidas para entendermos seu funcionamento básico e, principalmente, como utilizá-lo da melhor forma. É realmente interessante ver o quão diferente se torna o grupo com o uso dessa função e percebi isso com clareza quando testei ir a campo com um time novo sem estas ligações.
Há ainda uma progressão de nível similar ao que vemos desde sempre em Pokémon, que valoriza a experiência de batalha daquele personagem, e além disso, há monumentos de Draknar espalhados pelo mundo que, quando ativadas no formato de reverência e adoração, também liberam opções com habilidades únicas para todos os bichinhos equipados, os tornando ainda mais distintos de suas versões originais. É possível, com isso, ter dois deles da mesma espécie atuando juntos e, conforme vamos os especializando, cada um ser completamente diferente do outro. Soma-se a tudo isso uma habilidade especial típica daquela criatura, e temos uma coleção de possibilidades de batalha bastante diversa, dando uma dimensão ainda mais ampla para as 49 espécies disponíveis.
Entretanto, não são só os nossos amigos que podem passar por melhorias. Há runas equipáveis e artefatos que podem ser comprados ou encontrados no mundo que melhoram permanentemente tanto Lukha quanto o conjunto, independentemente de quem são os componentes daquele momento. E se há uma especialista em culinária no seu bando, há melhorias a serem produzidas com comida bem feita, o que significa que um pedaço de carne coletado pode até ser útil em um momento de desespero, mas quando cozida, principalmente na combinação com frutas e ervas, tem uma eficiência muito maior. Sem aquelas complicações que já vimos por aí com receitas sofisticadas e cheias de ingredientes raros, aqui vale a pena combinar o que tiver em mãos para resultados muito bons.
Cuidar da família é fundamental e vale a pena manter todo mundo ativo para quando o desafio começar a apertar. Sempre que um dos seus amigos cair em combate ele ganha um status de amaldiçoado, sendo necessário usar um item especial para reavivá-lo ou, de forma mais sustentável, colocando-o para descansar no santuário do acampamento por pelo menos uma rodada. Na prática, animais caídos precisam ficar fora de ação por uma iteração para poderem ser utilizados novamente, e exatamente por isso é importante ter mais componentes em potencial bem desenvolvidos para não precisar perder tempo ou sofrer de forma desmedida. Eu também mantive o costume de levar comigo sempre uma criatura recém conquistada para ganhar experiência, literalmente, ao lado dos membros mais veteranos do time. Gestão de grupo não é uma novidade para os aficionados desse tipo de jogo, então não há novidades aqui para os já experimentados.
O estilo de progressão, porém, é bem receptivo a quem tem paciência, já que é possível repetir indefinidamente cada nível antes de seguir com a história. Não da mesma forma, porque com a geração randômica, cada novo retorno a pontos já explorados é único, sem que o jogo economize nas informações de qual é a tarefa, quais itens podem ser encontrados e quais são os resultados esperados. Tudo é explícito e o jogador sabe muito bem onde está indo, o que vai enfrentar e o que espera trazer como espólio. Como prefiro estar sempre preparado ao máximo quando vou enfrentar um nível mais avançado, sou daqueles que sempre busca aquele loot extra por algum tempo até estar mais seguro e abastecido, e assim ganhar aquela gordura que pode ser queimada quando enfrentar inimigos mais fortes.
Esta repetição esperada é um grande trunfo, mas também uma das maiores limitações de Adore, porque o jogo não é dos mais diversos. Cenários e quadrantes, independentemente da disposição e do caminho, são muito redundantes e enjoativos, principalmente em objetivos mais simplórios. Entrar em uma nova fase que prevê a eliminação de todos os adversários é instigante na primeira, talvez na segunda visita àquela região do mapa. Nas demais, tudo acaba se tornando um mais-do-mesmo que existe só pela necessidade de acúmulo de experiência, testes de configuração do time ou simplesmente busca por recursos. Procurar pelos mesmos cantos não é empolgante, destruir barris já é enfadonho antes mesmo de se ganhar o troféu relativo a isso e atacar os mesmos contaminados não vale por si. Certamente, os menos pacientes vão preferir arriscar avançar e cair em batalha (o que nos leva de volta ao acampamento sem a coleta daquela investida) do que ficar escavando uma miséria de itens de suporte.
A composição visual do mundo também não é um dos maiores incentivadores da exploração constante, com paletas de cores bastante esquemáticas em cada cenário. A vegetação, bem como as construções, são bem modeladas e tem, por si, uma beleza minimalista bem atraente, mas novamente a pouca diversidade pode acabar tornando tudo repetitivo ao extremo. O design das criaturas, por outro lado, tem um charme especial e a grande maioria deles carrega em si um evidente capricho de modelagem. A minha favorita, sem dúvidas, é uma espécie de capivara de gelo com dentre sobressalentes que consegue misturar um elemento tipicamente brasileiro com a temática de fantasia sem parecer forçado ou piegas demais. Se não temos as centenas de opções vistas em jogos parecidos, com certeza temos o melhor conjunto no que se refere ao design.
A sonorização tem seus altos e baixos, mas no aspecto geral, ela é bastante satisfatória. Há um ou outro desnível na mixagem de canções em certas entradas, os diálogos só por textos são acompanhados por alguns ruídos e ciclos de animação simples e os efeitos de combate nunca chegam a impressionar, mas há sim músicas bem adequadas à proposta do game, flutuando entre a tranquilidade quase bucólica e o senso de emergência aventuresco. A localização para o português é, obviamente, muito bem articulada já que é o idioma nativo dos desenvolvedores, o que nos premia com um texto mais afiado e natural na medida do possível, com alguns maneirismos que são bem diferentes de traduções e adaptações. Diálogos e descrições narrativas, sobretudo, funcionam bem para contextualização, mas eu quero ver futuramente mais da lore criada, já que o jogo se mantém em um nível menos aprofundado.
Dizer que o resultado final do projeto é adorável seria um trocadilho fácil, mas nem por isso, incorreto. Adore é charmoso, conhece bem suas limitações na comparação com jogos de grande orçamento e investe claramente naquilo que importa, que são os tais monstrinhos que todo mundo quer conhecer. Se o ritmo de captura não é dos mais acelerados e se falta espaço para, como a velha dos gatos de os Simpsons, levarmos todas as criaturas perdidas para casa, há uma cadência que nos permite entender a dinâmica de iterações constantes e um modelo de progressão cumulativo que permite que tanto os mais ousados quanto os mais conservadores sigam de forma segura ou arriscada quando desejarem. O movimento cíclico é, contudo, algo que valoriza pouco as virtudes da jornada, algo que a repetitividade de ações e de ambientes acaba corroborando.
Ainda assim, eu fiquei realmente impressionado com o desenho cuidadoso das criaturas, a construção cheia de minúcias e variáveis do time e até mesmo a história, que se não é das mais originais, acerta no tom de uma aventura juvenil e sem os exageros tão característicos do gênero. A captura, aqui, preza pela qualidade, e não pela quantidade, e o mesmo pode ser dito de toda a estrutura do game, que acaba se tornando uma das surpresas do ano não só porque é uma produção de conterrâneos, mas principalmente porque eles definitivamente sabiam o que estavam propondo e o fizeram bem, muito bem.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela QUByte Interactive.
Veredito
Adore faz da mistura entre a captura de criaturas e a exploração de dungeons uma aventura empolgante e cheia de carisma. A repetitividade pode cansar e o design de níveis é bastante simples, mas com monstrinhos bem construídos e um belo sistema de personalização de time, o jogo pode surpreender e divertir.
Adore makes the mix between capturing creatures and exploring dungeons an exciting and charismatic adventure. The repetitiveness can get tiring and the level design is quite simple, but with well-built monsters and a nice team customization system, the game can surprise and entertain.
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