A força está com Kratos-Como um nome quase inexpressivo na mitologia grega edificou-se como um ser reverenciado na mitologia gamer?

Aviso: O artigo abaixo contém alguns spoilers de God of War I e II, no entanto, nada de God of War III é contado de forma explícita.

Seria óbvio começar este escrito acerca de God of War relatando que a maior façanha da franquia é o seu personagem principal. E será! Provavelmente God of War não teria a mesma significância se, de forma teórica, uma divindade grega como Hércules, Prometeu, ou o próprio Ares fossem personagens principais. A escolha do foco em uma figura, de nome originalmente quase inócuo perante a maioria das personalidades mitificadas citadas, fora algo bem acertado por parte da equipe de produção do jogo original, esta ainda encabeçada por David Jaffe.

Para propiciar um gameplay visceral, premissa de grande parte dos hack’n slashes, o time de produção da franquia conseguiu, através da figura de Kratos, encontrar um equilíbrio em sua narrativa com retrato próprio, este desprendido, por algumas vezes, do real significado e/ou atuação e personalização de alguns dos vários seres simbólicos da rica mitologia grega.

Kratos, de God of War, se diferencia da figura que inspirou seu nome. Única coisa que este preserva, e a que provém maior importância, é o aspecto da força como característica chave. Cratos (com C) era filho de Estige e Pallas. Ele era apenas um aliado de Zeus; teve algumas poucas citações em obras clássicas, sendo a principal em Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, grande teatrólogo grego. Nesta obra, que retrata o castigo aplicado a Prometeu que roubara o fogo divino para entregar aos homens, Cratos nada mais é que um servo leal a Zeus, que impõe ordens a Hefestos, deus do fogo, mas sempre temente ao deus-mor do Olimpo. Será que Ésquilo ficaria horrorizado ao ver tamanha insolência do homônimo espartano ao desafiar o deus dos deuses, indo contra a premissa de sua obra? Ir contra o status quo da História e da Literatura Antiga é o charme de God of War e da figura que tentaremos descrever, porém de uma forma diferenciada.

A formação do fantasma de Esparta

Provavelmente, muitos já se perguntaram quanto ao visual arquétipo de Kratos. Sua caracterização física esconde (ou revela) um passado tenebroso e uma anti convencionalidade típica dos atos previamente pouco heróicos do espartano. A origem de Kratos, que retrata nascimento, remonta à origem de Zeus. Quando Kratos nasceu, fora abandonado numa estrada, pois seu pai temia que o bebê tomasse o seu posto, o desafiasse, ao se tornar adulto.

Diante do clima de abandono, o bebê é encontrado por um guerreiro de Esparta que praticamente o faz entrar em um treinamento para órfãos do exército.

Caso você não tenha sucumbido aos braços de Morfeu (deus do sono) nas aulas de História, deve saber que, em um período da Antiguidade, o poder era polarizado entre Atenas e Esparta, sendo a primeira o berço da democracia e da inteligência, e, por sua vez, a segunda era onde reinava o espírito da força e das guerras, provenientes de uma constituição dura, arquitetada por Licurgo, um ser quase mítico entre os espartanos. Eis o encontro lapidar entre a personalidade e origem de Kratos e sua formação para os combates.

Kratos se destaca rapidamente entre seus co-irmãos pelo seu comportamento violento, indo além do que mandava o figurino espartano. Comandou milhares de seguidores que, militarmente, conseguiam angariar as vitórias para o seu líder. O comandante espartano tinha o espírito vencedor, procurava o êxito de todas as formas, nem que para isso tivesse que, ao sucumbir diante do rei dos Bárbaros e seu numeroso exército, fazer um pacto com Ares, até então o deus da Guerra e, por fim, ganhar a arma com a qual vários jogadores realizam satisfatórios e seqüenciais combos: as Blades of Chaos.
As Blades of Chaos são as lâminas presas aos braços de Kratos por correntes; praticamente um confinamento armamentista que serve para recordar da sua obrigação para com Ares.
Com isso, Kratos se tornara mais sanguinário do que nenhum deus jamais ousou pensar, no entanto, havia algo que ele prezava, acima de tudo…


A humanidade de Kratos

Perambulando pelas minúcias do enredo, seja na trilogia, em Chains of Olympus de PSP ou em God of War Betrayal para celulares, é um pouco complicado tecer uma personalidade humanista para Kratos.
Veja bem, cenas como as vistas após a destruição da Hidra (primeiro chefe do jogo), onde ele entra dentro desta no intuito de pegar a chave para o quarto do capitão, o referido senhor lhe pede ajuda e ele praticamente nega, jogando-o para os confins internos da criatura mitológica; cenas como o ritual para abrir uma determinada porta que exigira um sacrifício de um humano e Kratos, controlado pelo jogador via gameplay, executa a ação, enfim, são muitas as situações que envolvem a falta de um aspecto humano ao guerreiro espartano. Tudo isso vivenciado pelo jogador. David Jaffe, criador da franquia, em uma entrevista um pouco antiga para o site 1UP, mencionou alguns desses exemplos e a forma como a equipe de produção almejava que o jogador sentisse cada momento de fúria, cada arrancar dos olhos de um Ciclope, coisa que Ulisses, em A Odisseia, de Homero, usou mais da esperteza do que da força bruta em si. No entanto, estamos dialogando sobre Kratos, certo?

Contudo, nesta mesma entrevista, Jaffe confidencia que a parte que ele mais tem apreço do jogo é o momento em que o guerreiro espartano dá parte de sua energia para mulher e filha, em meio a diversos inimigos vultos de si. Kratos, através de um "Quick Time Event" aplicado pelo jogador, abraça seus familiares e beija a sua mulher e, nisso, a referida parcela de energia é transferida. Isso se passa através de um flash-back, num local onde seria um dos maiores tormentos de Kratos. Mulher e filha são mortas por ele mesmo, numa de suas missões a mando de Ares. Ao cremar o corpo de ambas, as cinzas dos dois corpos envolvem o guerreiro espartano. Isto faz com que Kratos ganhe parte de sua coloração branca, como é comumente visualizado e, devido a isso, a carregar esse tormento de ter feito tal ato danoso para si e para seus entes queridos, carregar esse tormento tanto no corpo, como na alma, faz nascer a sua alcunha de “O Fantasma de Esparta”.

Adicionado a isso, Kratos se sente enganado por Ares, e é aí que começa a rede de vinganças que fará com que um simples mortal derrote deuses, se torne um deles e, através de outros feitos durante o enredo dos jogos da série, mude completamente, subverta a mitologia de um jeito que difere da forma como nós a conhecemos.

E por isso é pedido que o jogador desfrute de cada momento, em cada jogo de God of War. Pesquise é claro, pois muita coisa é usada como mote para o seu enredo, porém não de maneira a moldar um retrato do que foram as lendas da Antiguidade, mas sim de fazer um auto-retrato, assimilar a mitologia, apresentar outra visão dela, favorável ao gameplay, entretanto, não somente no aspecto visceral, e sim, também, para entender este personagem em sua força, mas em suas fraquezas também. God of War III praticamente encerra este ciclo, edifica Kratos curiosamente como um mito fora deste universo e um anti-herói, contrário à tipologia mítica dentro do enredo. Quem é fã assíduo da série irá se sentir satisfeito com o resultado final.

David Jaffe disse uma vez que “God of War explica, em última instância, porque não há mais mitos gregos”. As palavras dele não poderiam ser mais lapidares. Kratos representa a negação de mitos e ritos, elevando-se a um diferencial patamar, o encontro entre games e uma diferenciada visão da História dos mitos gregos, favorável à narrativa interna e somente por ela. O personagem é produto de um enredo global que com certeza o faz ganhar força muito maior do que uma entidade que apenas acompanhou Prometeu, segundo obra citada de Ésquilo, em seu martírio. Isso deverá ser ampliado, ou melhor explicado, em God of War: Ghost of Sparta, recentemente anunciado para PSP, o qual terá o enredo fixado após os acontecimentos do primeiro jogo e mostrará a ascensão do novo deus da guerra. Cito os últimos dizeres de Gaia no primeiro trailer do novo jogo que sairá para o portátil da Sony ainda este ano: " Every end must first begin". Portanto, descobrir o começo ajudará a entender o fim. Ajudará a, paradoxalmente, ordenar o caos.

* Soneto de Sangue

Vingança, alimento para alma
É espartana a força que aniquila
O baile sanguinário que cintila
Espada acorrentada como arma

O ato de um controverso anti-herói
Mundo grego e gamer são invadidos
O universo e seus versos feridos
Destruição é algo que constrói

Alicerça a vontade por guerrear
Edifica a fama do personagem
Tal qual Zeus não poderia esperar

O Olimpo e sua bela paisagem
Estariam prestes a desmoronar?
Kratos eternizou sua imagem

* O contexto da mitologia grega, na literatura, é passado através da poesia épica, também conhecida como epopeia. A Odisseia, de Homero, é um exemplo deste tipo de gênero que retrata através de narrativas algum feito heroico. No entanto, para quem jogou God of War, sabe que Kratos é o tipo de personagem que quebra paradigmas. Portanto, o soneto acima, também de minha autoria, representa esta quebra, uma assimilação de um estilo dentro de outro.

Este artigo fez parte de uma matéria originalmente publicada na quarta edição da Revista Digital Wii+PS3 Brasil.

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