Dentre os esportes de combate, o boxe sempre teve um papel destacado enquanto espetáculo de entretenimento, sobretudo no ocidente, quando estrelas como Muhammad Ali, Mike Tyson, Oscar De La Hoya, Sugar Ray Robinson e Julio César Chávez eram ainda mais aclamados que os mais célebres lutadores de MMA atuais. Mesmo Floyd Mayweather, mais recente fenômeno do esporte, tem seu espaço na mídia bastante destacado, enquanto os olhos do mundo se viram para as artes marciais mistas.
Esse prestígio transbordou, obviamente, para os mais diversos meios da cultura pop, e filmes como Menina de Ouro e, obviamente, a franquia Rocky sempre construíram no imaginário coletivo uma aura especial para a modalidade. Nos videogames, não é diferente, e clássicos como o Boxing (Atari) e Punch-Out!! (NES) sempre estiveram dentre os maiores títulos destas plataformas mesmo nas listas de preferências de jogadores que nunca foram tão adeptos das versões reais deste esporte que é, até hoje, muito questionado pela natureza violenta de suas disputas. Eu mesmo passava horas admirando as qualidades de George Foreman’s KO Boxing no meu velho Master System, mas nunca fui além de ver na TV algumas lutas do Tyson ou do nosso Acelino Popó.
Com o passar dos anos, o boxe se tornou um tema cada vez menos interessante para o público dos games em geral, e mesmo com o sucesso estrondoso da sua parcela em jogos menos especializados, como o Wii Sports, nos falta uma grande referência nas gerações mais atuais, com algum destaque isolado para Fight Night, da EA, e para o divertidíssimo Ready 2 Rumble Boxing, um dos meus títulos favoritos do saudoso Dreamcast. Undisputed chega procurando ocupar esta lacuna que muitos de nós nem nos dávamos conta de que existia, e aposta pesado em licenças individuais de pugilistas de diversas divisões, incluindo alguns de eras passadas, e principalmente em um sistema de gameplay que busca dar ao gênero a diversidade de movimentos que sempre foi o seu calcanhar de Aquiles diante franquias mais pomposas e menos compromissadas com o mundo real.
Logo de cara, portanto, chama a atenção a presença de algo em torno de 70 lutadores inspirados em suas contrapartes verdadeiras, incluindo nomes de peso como Canelo Alvarez, Joe Louis, Oleksandr Usyk, Tyson Fury, Roy Jones Jr., Katie Taylor, Claressa Shields, e talvez o mais icônico de todos, o já citado Muhammad Ali. Por outro lado, na prática a maioria deles traz um moveset bastante similar entre si, o que significa que, à exceção de quem é realmente um fã do esporte e o acompanha fielmente, conhecendo bem os pugilistas atuantes nas diversas organizações mundiais, essa diversidade acaba se dissolvendo, e sobram poucos personagens realmente significativos. É como em jogos de futebol, onde nos admiramos com centenas de times licenciados, mas acabamos casualmente jogando sempre com os mesmos quatro ou cinco mais famosos.
Essa relação com outros games de temática esportiva, aliás, é tão evidente quanto esperada, e se estende também pelos modos de jogo disponíveis. Além de poder compartilhar a porradaria com um amigo localmente, ou com muita gente de forma on-line, o conteúdo mais parrudo para o single player é, sem dúvidas ou surpresas, o inevitável modo carreira, onde assumimos um novato inexperiente treinando e lutando em muquifos improvisados, e progredimos até alcançar o tão sonhado cinturão mundial.
Tudo isso depende, claro, de uma compreensão dos possíveis movimentos, combos e conexões, que são bastante sofisticados considerando o que é, de fato, o boxe, então o tutorial, para qualquer perfil de jogador, é tão obrigatório que é a primeira coisa que o jogo nos guia a fazer. Logo, estamos distribuindo socos potentes principalmente na cabeça ou no abdômen, aprendendo a punir nossos adversários e a pontuar com eficiência. A vitória não é sobre sempre nocautear, mas sim saber como acertar mais golpes de impacto do que tomá-los. Esquivas, guarda alta e recuos pontuais são não só parte de um modelo mais conservador de luta, mas sim recursos de sobrevivência. E aprender, aos poucos, partindo do zero, é uma forma realmente eficiente de se aprender as principais lições.
Com um bom criador de personagens, a gestão de carreira funciona bem em termos de simulação e planejamento de ações, sem nos fazer perder tempo demais lendo estatísticas ou cuidando da papelada chata. É primordial treinar ou realizar ações prevendo o controle de peso para manutenção da categoria, tanto ao longo das semanas convencionais quanto nas dedicadas à preparação das lutas. As mais avulsas, inclusive, são especialmente promovidas para se subir no ranking, para se arrecadar um melhor capital de giro (e assim ter melhores treinadores) e também para criar uma boa repercussão nas redes sociais in game, porque no final das contas, tudo é show business, então negociar bons cachês e condições melhores de preparação é parte do pacote. Tudo para dar suporte a eventos e para o coração do gameplay.
Aparentemente, o tempo em que ficou disponível nos PCs em acesso antecipado ajudou bastante a trazer um sistema bastante dinâmico para os combates. Além de uma boa variedade de socos, que se aproveitam bem de fatores como velocidade e força dos atletas, há que se gerenciar o nível de resistência para não cansar demais e se tornar pouco efetivo e vulnerável, e é aqui onde o realismo pode ser um obstáculo para os mais afoitos, e talvez até um sistema de corta-clima, não porque seja ruim, mas porque acaba nos obrigando a segurar o ímpeto ou pior, pode proporcionar lutas bem travadas em um jogo mental de estratégia mais do que de pancadaria.
Ao evitar o sentimento de que pode mais quem esmagar o controle com mais vontade, também deixa a diversão tão cadenciada quanto suas lutas. Um bom exemplo é que a certa altura, minha personagem da campanha se lesionou, diminuindo por algumas semanas seus status de força com a mão direita. Com a opção de acelerar a cura via fisioterapia pagando por isso, foi o que decidi fazer. O tratamento pode falhar e, bem, falhou todas as vezes, me fazendo ter que escolher entre usar o pouco dinheiro que tinha àquela altura para tentar de novo ou ficar mais 3 meses de molho. Ou seja, eu poderia gastar tudo o que tinha ou deixar de fazer lutas e ganhar um pouco mais. Uma escolha onde não há vitória. Algo aleatório demais para um recurso totalmente secundário.
Por sua vez, saber utilizar bem dentro das lutas em si o sistema de esgotamento do adversário é um elemento chave para a vitória. Você pode ir minando as energias alheias golpeando com solidez até que ele entre em estado vulnerável, e aí aproveitar para derrubá-lo. Os movimentos de esquiva e defesa, porém, podem ser um empecilho para quem só quer resolver logo a parada, sobretudo quando se compreende as formas de usar bem a movimentação tridimensional pelo ringue. Há que se entender o jogo de pernas para que o alcance dos ataques seja proveitoso, e tanto humanos quanto a IA vão abusar das saídas laterais, das defesas bem colocadas e dos recuos estratégicos. Para isso, os tutoriais básicos não preparam o jogador e somente a prática, principalmente contra bons adversários em dificuldades mais elevadas, pode nos municiar para quando a coisa realmente aperta.
Undisputed, em termos de ritmo de combate, não é obviamente nada parecido com jogos de luta mais convencionais, e tem um elemento de planejamento bastante inerente para a abordagem. A agressividade desmedida não leva ninguém muito longe, e mais do que aprender bons comandos de sequências cinematográficas, criar uma tática de boa constância sem perder a estamina rapidamente e, ao mesmo tempo, não ser só um saco de areia tomando pancada, é o desafio mais rigoroso do game. Para além disso, há que se aprender o timing de golpes para evitar os socos soltos no ar ou a abertura gratuita na guarda. Cada movimento importa quando todos eles nos cansam rapidamente.
Entrar em batalha, porém, é flertar com o perigo, e mesmo quando se está em vantagem seja pela pontuação, seja pelo esgotamento do adversário, um descuido pode resultar em uma virada rápida da situação. E quando a queda é inevitável, conseguir levantar para não colocar tudo a perder é fundamental. E gerando uma certa frustração, o meio como o jogo encontra para nos propor um esforço é um tanto quanto controverso, já que é um exercício de precisão, que emula a concentração, mas que na prática é só irritante. O resultado é poder derrubar um adversário três, quatro vezes seguidas, e na primeira queda nossa, se não souber bem como dosar os gatilhos, ser nocauteado sem apelo. Funciona, oferece aleatoriedade para lutas disputadas, mas parece um tanto quanto injusto se decidir uma luta assim.
Por outro lado, um critério que pode ser cruel com jogos esportivos, principalmente os de menos escopo de investimento, é o caráter visual e a eterna cobrança pela representação mais próxima do real possível, e Undisputed, mesmo sem a exuberância de um jogo no ápice da geração, consegue se mostrar muito competente neste departamento. Figuras conhecidas são muito bem representados, tanto na caracterização visual quanto em movimentações características. É inevitável não se admirar quando Muhammad Ali caminha com sua guarda baixa e desfere alguns de seus socos mais icônicos, ou quando vemos o suor refletindo das costas de um lutador no máximo do seu esforço, ou ainda quando o supercílio de um adversário castigado vai se abrindo ao longo de uma boa batalha. Detalhes são, muitas vezes, impressionantes, e fazem toda a diferença.
O mesmo vale para a sonoplastia das lutas, muito representativa do impacto de cada soco. Quando se acerta um belo cruzado no queixo do adversário, é nítido e notório o quanto o jogo consegue transparecer a gravidade do golpe, e o mesmo vale para o lado contrário, com ataques quase inofensivos transmitindo pouca efetividade. O som da torcida é outro acerto, mas um pouco mais tímido, refletindo muito mais a ambientação do que a emoção de cada round. O destaque menos interessante fica por conta de cenas automatizadas sem personalidade, ângulos de replay medíocres e animações repetitivas de entrada, queda, contagem e retorno. Para um esporte celebrado pela espetacularização da violência, sobra pouco de espetáculo para se celebrar.
No final das contas, Undisputed é sim um competidor digno, principalmente dentro de um nicho tão carente de bons títulos recentes. A diversidade de golpes e combos, para um jogo onde só de pode usar punhos para ataques, é realmente surpreendente, e não demora muito para que se aprenda que o domínio de recursos de defesa, movimentação e cadência é, no mínimo, tão importante quanto o de movimentos de ataque. Alguns artifícios do sistema de colisão tridimensional e a preocupação com o realismo, porém, podem desanimar os mais afoitos, enquanto a repetitividade de todas as animações e enquadramentos de contextualização escancara que há limites para uma produção do escopo desse game.
O modo carreira, mesmo não sendo necessariamente longo, é um bom espaço para se passar durante o jogo solo, com boas soluções para gerenciamento que, entretanto, não se aprofundam demais na burocracia, permitindo que a preparação seja realmente algo complementar ao que que interessa, e não o contrário. Já o multiplayer garante um pouco mais de longevidade e aproveitamento do ótimo elenco, e os desafios sazonais agregam valor e qualidade de vida, mas no conjunto, ainda parece pouco para manter o público cativo por muito tempo. Alguns nomes consagrados ainda fazem falta, enquanto a preocupação com o realismo pode ser mais competente do que divertido. Não há dúvidas, todavia, que há aqui uma vitória sólida, construída com respeito ao público e ao esporte. Porém, dependendo do ponto de vista, falta um certo impacto inconsequente que poderia atrair jogadores menos compromissados com a versão real do boxe.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela PLAION.
Veredito
Undisputed, mesmo com faltas sentidas, sabe que investir nas licenças de grandes pugilistas é uma necessidade para um jogo do gênero e usa isso a seu favor, em uma soma entre o uso da imagem de estrelas imemoriais dos ringues, um modelo de gameplay tão variado quanto possível para um jogo de boxe, e visuais que atendem bem o que se espera deles. Se não é um nocaute arrasador, ao menos garante uma boa vitória por pontos.
Undisputed, despite its flaws, knows that investing in licenses of great boxers is a necessity for a game of this genre and uses this to its advantage, combining the use of images of timeless stars from the ring, a gameplay model as varied as possible for a boxing game, and visuals that live up to expectations. If it’s not a devastating knockout, it at least guarantees a good points victory.
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