2024 tem sido um ano cheio de aventuras bombásticas. Grandes RPGs, cheios de missões secundárias e ambições narrativas e conceituais revolucionárias, remakes de clássicos atemporais com uma mensagem ainda mais relevante em 2024 do que em seu lançamento original, DLCs para clássicos contemporâneos ou sequências há muito tempo aguardadas de jogos icônicos.
Em meio a todos esses jogos enormes que já saíram ou sairão, é difícil conseguir se manter animado o tempo todo para pular em novas aventuras grandiosas. Em alguns momentos, é necessário um pequeno aperitivo, um jogo menor, mais “confortável”, que não exige tanto do jogador. Aquela boa e velha “comida caseira” em meio a dias e semanas comendo fast food ou em restaurantes temáticos.
Essa talvez a melhor analogia para o que é a experiência de jogar Visions of Mana. Embora, após todos os remakes lançados da série nos últimos anos, culminando no muito bem recebido Trials of Mana de 2020, esse primeiro jogo original da série em 18 anos seja o mais ambicioso da franquia até hoje, ele ainda consegue passar o sentimento de conforto, de se estar sentado no sofá de casa em uma tarde qualquer pós-escola sem grandes preocupações vendo uma grande aventura de “Sessão da Tarde”, com suas próprias e boas viradas, mas em que você sabe que tudo vai ficar bem.
Liderando essa jornada temos o bom e velho clichê do protagonista que é um bom rapaz, sempre preocupado com os outros e disposto a fazer de tudo para ajudar, aqui encarnado na pessoa do jovem Val. Val é escolhido logo no começo do jogo como Soul Guard, o guerreiro mais poderoso de sua vila encarregado de escoltar os Alms em sua jornada até a Mana Tree, onde eles precisaram se sacrificar em prol de manter o fluxo de Mana circulando e, com isso, garantir a existência de suas respectivas vilas e cidades, já que cada região é responsável por prover um Alm, uma espécie de oráculo, ligado a um dos elementos que constituem o mundo.
Sâo justamente esses Alms que vão formando a sua equipe, com Val e Hinna, a jovem que funciona como interesse amoroso do Val e que acaba sendo escolhida para ser a Alm do Fogo, partindo da sua vila para encontrar os demais Alms espalhados pelo mundo. Ao longo da jornada, Val e seus amigos vão não só encontrando novos aliados e conhecendo lugares deslumbrantes, mas vendo também o efeito que a falta de um Alm é capaz de causar, com a falta de Mana causada pela não-realização da procissão por um Alm sendo capaz de destruir regiões inteiras.
Em paralelo, diferentes plots relacionados vão surgindo, com diferentes pessoas com seus próprios interesses colocando não só a jornada do grupo em risco, mas a própria existência da Mana Tree, com lendas sobre um mundo em que esses sacrifícios não eram necessários graças ao poder de um lendário herói portador da Mana Sword. São pequenos plots que aparecem aos poucos e vão se desenvolvendo, com o jogo fazendo um excelente trabalho apresentando essas ameaças de pouco em pouco.
A narrativa como um todo funciona muito bem, mantendo sua leveza sem necessariamente tornar uma piada momentos mais tensos ou pesados. Ela consegue ser tocante e emocionante nos momentos certos, apresenta ameaças reais a serem superadas pelos heróis mas estabelece bem a força deles para vencer e desenvolve a dinâmica entre todos os membros do grupo de forma bem satisfatória. Dito isso, não espere nada grandioso ou revolucionário como um Final Fantasy VII Rebirth ou NieR: Automata, mas sim algo mais leve e acessível para um público mais jovem, numa pegada mais shonen mesmo.
Apesar da jornada e da história como um todo ser um dos pontos mais legais do jogo, parte desse sucesso se dá graças aos seus personagens. O grupo é bem variado e rico, com diferentes personalidades trabalhando muito bem entre si para apresentar um grupo muito entrosado. Parte do que torna a dinâmica tão funcional é que, apesar de todos terem um objetivo em comum, a forma como cada um pensa sobre e o que os motiva a seguir aquela jornada é bem diferente.
O fato é que, apesar da estética bastante colorida e iluminada, Visions of Mana tem um certo fator mais sóbrio pela certeza de que, ao final da jornada, todos os Alms vão precisar sacrificar suas vidas em prol da Mana Tree e do suposto bem do mundo. Como cada um vê esse sacrifício e pensa sobre é diferente e é questionável até se há uma razão para fazê-lo simplesmente para “manter o mundo funcionando como ele é”. Há alguns temas bem interessantes permeando a narrativa e que vão sendo trabalhados aos poucos através desses personagens, mesmo que o jogo fuja de longas cenas de exposição como em outros do gênero.
É genuinamente uma história tocante, movida por personagens que, apesar da relativa simplicidade como são escritos, são carismáticos e conseguem prender o jogador graças a excepcional dinâmica entre eles. É também um raro caos de um RPG girando em torno tanto do potencial fim do mundo e do que é necessário se fazer para que isso não aconteça, mas que o contrapõe de forma muito cuidadosa a constantes questionamentos sobre se, de fato, esse mundo sequer vale a pena salvar.
Tudo isso em paralelo com o relacionamento entre Val e Hinna sendo uma parte central sobre o funcionamento da história. Embora eles comecem o jogo como dois jovens impulsivos empolgados com a jornada pela frente, logo eles passam a questionar isso e, principalmente, o que isso significa para o futuro da relação entre eles. Val, enquanto Sol Guard, sobreviverá a jornada, então ela não tem o mesmo peso para ele que tem pros Alms, que, obrigatoriamente, precisarão se sacrificar.
Contrapondo isso a Eoren, um personagem que não só viu o pior lado dos elementais e o preço que se paga mesmo fazendo aquilo que se espera dos envolvidos na jornada e o quão disposto a ir para salvar quem ele ama, o jogo constrói uma narrativa que, embora tenha um claro grupo de heróis e vilões, eles funcionam porque a motivação deles são críveis, caminhando entre tons de cinza que eu não esperaria do jogo. É uma das narrativas mais legais, bem construídas e perdoáveis, ainda que tenha seus leves tropeços na jornada, graças a mensagem que ele quer e consegue entregar.
Talvez o ponto mais negativo relacionado a história seja um dos poucos em que o orçamento um pouco mais limitado do jogo se mostra que é na baixa qualidade da dublagem dos personagens em inglês. Embora seja bem melhor do que a dublagem vista em Trials of Mana, ela ainda deixa um pouco a desejar, com os personagens sendo relativamente monotônicos, soando mais animados do que deveriam em certos momentos por terem quase que uma só voz. Embora as vozes sejam boas, talvez tenha faltado um pouco mais de direção da dublagem para transmitir melhor o sentimento de certas cenas.
Um outro ponto que cabe apontar aqui é que, embora o jogo seja visualmente bem bonito, a iluminação em certas cenas, casado com o visual um pouco mais “encerado” dos personagens, que realmente se aproxima mais de bonecos, com feições mais duras e um pouco estáticas, acaba tornando certos momentos não tão agradáveis assim. Dito isso, é uma reclamação que surge em poucos pontos, sendo algo que se consegue relevar durante a maior parte da experiência.
E isso se dá muito pelo jogo em si, seus cenários e exploração, serem bem agradáveis aos olhos. Embora não seja um jogo de mundo aberto, ele é composto por áreas interligadas bem vastas que podem ser exploradas a pé ou através de diferentes meios de transporte que vão sendo desbloqueados ao longo do jogo. O ponto negativo é que, apesar de serem enormes, elas são um pouco vazias, com grande parte das recompensas espalhadas por elas se dão na formas de itens em baús ou jogados no chão e recursos que podem ser usados para comprar itens junto aos Dudbears ou melhorar as suas classes de personagem através de elemental points (EP).
Essa qualidade visual se expande ao gameplay. As batalhas começam bastante simples e rasas, mas a medida em que o jogador vai desbloqueando novas habilidades, o que pode ser feito desbloqueando novas classes através da coleta de diferentes Elemental Vessels, itens que representam e canalizam os diferentes elementais existentes no mundo, e destravando essas habilidades usando EP, o combate vai ficando cada vez mais rico e variado.
Cada Vessel tem habilidades bem diferentes e é necessário variar entre eles ao longo do jogo, já que cada elemental tem suas próprias vantagens e desvantagens contra os inimigos. Saber estabelecer suas habilidades, mapeá-las para os comandos certos (já que é possível usar algumas delas até sem o Vessel equipado) e as classes e estratégias dos seus aliados é fundamental, já que você só possui controle direto de um dos três membros da sua equipe durante o combate, embora seja possível alternar com o apertar de um botão só.
É um sistema divertido e que consegue se manter não só funcional, mas divertido ao longo de toda a jornada, com novas habilidades conseguindo trazer sempre algo de legal e diferente sem tornar excessivamente repetitivo. Parte do charme é que cada personagem possui também um ataque especial de classe, ativado com L2, que é diferente entre todos já que as classes são específicas para a combinação entre personagem e Vessel, e uma habilidade relacionada a esse Vessel com R2, que vão de ataques em área a possibilidade de, por exemplo, reduzir a velocidade dos inimigos em uma área.
Um dos pontos mais funcionais do combate é o quanto o combate consegue se manter equilibrado muito graças a sua curta duração, com combates sendo bem rápidos, raramente durando mais do que 20 ou 30 segundos, salvo pelas batalhas com chefes. Há também uma verticalidade maior, com vários combos e habilidades podendo ser utilizados no ar, com um espaço e dimensão maior dando uma sensação de escopo ao combate que não era visto em jogos anteriores da série.
Dito tudo isso, Visions of Mana é um jogo que é bastante recomendável para fãs de JRPGs buscando um jogo mais confortável e divertido, sem tanto peso ou complexidade, mas que ainda consegue se manter imensamente divertido e engajante ao longo da jornada, muito graças a qualidade da escrita dos seus personagens e narrativa e do gameplay ágil e prático.
Embora ele tenha suas falhas e seus pequenos problemas, é o tipo de jogo em que esses problemas tem menos peso graças às expectativas um pouco mais baixas, mas que consegue ainda assim alcançar o que se espera dele e entregar exatamente o que o jogador quer entre jogos grandiosos, sendo a definição perfeita de “comfort food”, quase como tomar uma sopa quente numa noite de inverno frio.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Square Enix.
Veredito
Visions of Mana é um excelente JRPG e a mais pura definição de um jogo confortável. Com gameplay funcional e bastante divertido, uma história simples, mas com uma reflexão a entregar e muito bem executada, o tornam, com bastante facilidade, um dos melhores (se não o melhor) jogos da série até aqui.
Visions of Mana is an excellent JRPG and the purest definition of a comfortable game. It has a functional and quite fun gameplay, and a simple but thought-provoking story that is very well executed. All of this make it quite easily one of the best games in the series so far.
[/lightweight-accordion]