Poucas transformações nos paradigmas do mercado dos videogames se provou tão traumática para mim quanto a dos jogos de corrida. Confesso que a minha sensação na primeira vez que experimentei Gran Turismo lá no meu PSOne amarelado foi a de que as coisas jamais voltariam a ser simples como antes. Provavelmente não com esta clareza de pensamento, mas estava claro que os tempos seriam outros, com games buscando alucinadamente um tal ultra realismo graças, em grande parte, ao deslumbramento que a tridimensionalidade nos proporcionou.
Vencido pelo tempo implacável, eu mudei, me acostumei, me adaptei, e como todos da minha geração, me convenci que a complexidade se provou tão inevitável quanto genuína. Foi fácil seguir a tendência de dividir os games do gênero entre os que pendiam para um aspecto de simulação cada vez mais próxima do mundo real, e os que se mantinham naquilo que foi posteriormente chamado de arcade, mesmo que a dicotomia antagônica entre ambos fosse se tornando cada vez mais enevoada. Ainda é possível apontar os games de kart, além de franquias quase escanteadas como Need For Speed, Burnout e o saudoso MotorStorm como partes do ápice da falta de compromisso saudável com a realidade, algo cada vez mais periférico mesmo dentre os jogadores mais antigos. Tudo evoluiu. Ou quase.
Entretanto – e sempre há o tipo de exceção que torna a regra mais interessante – algumas propostas se mantém mais direcionadas à fanfarronice cafona dos carros voadores, das pistas improváveis e das disputas que se distanciam do acerto correto de amortecedores, do uso do tipo de pneu adequado ao terreno e da tomada de curva pelo traçado perfeito. Correndo pelas beiradas, a marca Asphalt se aproveitou de uma lacuna por esse tipo de proposta sobretudo no crescente mercado mobile para se estabelecer exatamente com essa proposta mais direta, dedicada aos carros como itens de colecionador e às corridas descompromissadas. Se a linha Hot Wheels Unleashed já tenta explorar esse conceito, Asphalt Legends Unite agora migra para os sistemas mais parrudos de mesa buscando mais um salto improvável.
O jogo chega, assim, ao Playstation com a proposta free-to-play apostando na paixão pelas máquinas como seu grande ponto de partida, mas focando em corridas rápidas e distantes da burocracia distribuídas em um volume enorme de conteúdo para manter a fidelidade do jogador, algo essencial para tal modelo de negócios. São simplesmente centenas de horas para uma campanha single player que segue bem a cartilha de se expandir em temporadas de acordo com o investimento de seu público, que pode ser tanto em tempo quanto em dinheiro. Afinal de contas, correr é parte da proposta, mas estar em busca de mais um envelope de cartinhas é o combustível que alimenta o colecionismo de todo bom entusiasta do esporte a motor.
Participar de eventos, portanto, do mais fixo no modo campanha aos sazonais que se abrem de tempos em tempos, gera premiações constantes e recheadas de pompa, mesmo quando o resultado prático é algo como uma parte de quarenta e cinco de uma Ferrari. Isso porque o desbloqueio de novos veículos se dá de uma forma muito similar ao que já foi visto antes em outros jogos, como o recente Disney Speedstorm por exemplo, onde você consegue o carro se somar uma quantidade estabelecida de cartas dele. Um Camaro, por exemplo, pode ser conquistado quando juntamos 35 cartinhas específicas nas mais variadas formas de competição, além de, claro, poderem ser conquistadas comprando pacotinhos na nada modesta loja do jogo.
Tê-lo em sua garagem, contudo, não é o suficiente. Há melhorias a se fazer em cada um de quatro quesitos distintos, algo que depende de se gastar quantias generosas da moeda principal do jogo, conquistada também por vitórias e objetivos alcançados. Novas cartinhas de veículos já adquiridos também podem ser utilizados em melhorias permanentes aumentando o grau de estrelas do mesmo, valorizando ao máximo o replay em busca de melhores resultados. Em outras palavras, a matemática é bastante simples: você corre para ganhar carros melhores, usa-os para competir melhor e ganhar ainda mais para buscar outros carros mais impressionantes, e depois levá-los ao extremo de suas melhorias, para enfim recomeçar o ciclo. Um modelo longe de ser inovador, mas reconhecidamente muito eficiente.
Suas qualidades, porém, seriam pouco longevas não fosse um loop de gameplay extremamente viciante e satisfatório. Poucas são as disputas que ultrapassam os dois ou três minutos, sobretudo na campanha principal, com vários deles girando na casa dos 30 segundos, por vezes menos. Nas temporadas iniciais, aliás, as comuns 15 corridas duram juntas menos de uma hora na grande maioria dos casos, o que significa uma sensação de progresso visível e constante, já que aqueles quinze minutinhos de bobeira de um dia cheio parecem render muita coisa. A renovação constante dos desafios diários e dos itens da loja completam o serviço, tornando a visita constante praticamente uma obrigação moral. Mas para além da burocracia, é inevitável dizer que a essência de Asphalt Legends Unite é boa demais.
No final, você ainda estará acelerando e tentando se manter na pista, quem sabe até freando quando todos os demais recursos se mostrarem falhos, mas sem qualquer tipo de cartilha para fazer algo de um jeito que possa ser chamado de correto. Os traçados, inclusive os mais acidentados, são confortáveis o suficiente para não assustar nem os menos experientes, e os carrinhos são bem fáceis de se controlar. Acertar uma corrida limpa é a menor e mais entediante das tarefas a se cumprir, e bom mesmo é conseguir se aproveitar dos recursos como derrapagens e principalmente ganho de desempenho via nitro para atravessar do ponto A ao ponto B da forma mais insanamente inconsequente possível.
Os tutoriais do jogo, que não são poucos aliás, se dedicam quase que exclusivamente para ensinar a tirar o melhor proveito da barra enorme de ganho de desempenho na tela. Acioná-la no tempo certo, carregá-la saltando ou aplicando giros em 360 graus (o nosso zerinho) e mantê-la sempre cheia é a melhor – e na maioria dos casos, única – forma de chegar ao topo do pódio. Ignorar esta principal característica do jogo é flertar com a vergonha absoluta e com o tédio, o que dá o recado mais claro possível: quem prefere um sistema mais próximo do realismo de jogos baseados no automobilismo de carros de passeio, certamente irá encontrar muito motivos para se decepcionar aqui. Se há alguns dias eu me esforçava para não passar do ponto de frenagem e para não encostar no adversário logo a frente em F1 24, hoje estou agindo de modo exatamente contrário.
Os traçados, que se aproveitam bem de muitas versões alternativas de poucos locais para incluir diversidade suficiente para tudo o que ainda vem pela frente, contam com recursos bastante satisfatórios. De rampas para piruetas a power-ups, de diversidade de terrenos a caminhos alternativos, tudo é pensado para favorecer a disputa e aquela dose controlada de insanidade que esse tipo de jogo exige. São cenários belíssimos que rodam o mundo todo em versões pouco compromissadas, mas bastante reconhecíveis de grandes pontos turísticos que passam, dentre outros tanto, pelo vão da Torre Eiffel às ladeiras de São Francisco, em um belo trabalho de level design.
Atingir um adversário, esteja ele à frente, esteja em algum outro ponto da disputa, utilizando os recursos de turbo, causa a explosão do pobre coitado, sem mais e sem menos. Não é perda de velocidade, não é turbulência, não é descontrole momentâneo, mais sim explosão mesmo, com direito a rodas saindo e carenagem esfarelando. Não que haja tempo para se lamentar ou celebrar, porque a recuperação e retorno em alta velocidade são quase imediatos. Asphalt Legends Unite está muito pouco preocupado com punições, porque no final das contas, ele quer mesmo ver adversários alcançando uns aos outros para ver a confusão aumentar de escala e quanto mais ultrapassagens vingativas, melhor para o espetáculo farofeiro.
É aí onde os modos multiplayer se mostram os espaços mais divertidos do jogo. Seja on-line, em sistemas ranqueados ou aleatórios, seja na tela dividida com até quatro pessoas, tudo se torna ainda mais bagunçado, no bom sentido. Se correndo contra a IA, o desafio se estabelece muito mais pelo preparo do carro do que pela perícia da CPU, dividir a jogatina com outras pessoas equipara tudo, estabelecendo a sagrada regra ancestral de “quem pode mais chora menos”. Saber administrar melhor a tal barra de força extra, encontrar os melhores traçados e ser implacável com quem está sentado ao seu lado são as melhores formas de se sair vitorioso. Mesmo que na prática o jogo não contabilize seus esforços no multiplayer local com cartas ou moedas, é onde eu mais me diverti nesses dias de lançamento.
As estrelas do show, por sua vez, estão presentes em qualidade e também quantidade. Vários modelos icônicos dos jogos de corrida se fazem presentes, por vezes em versões diferentes de si mesmos, e contam com um trabalho de modelagem que, se não está no mesmo nível de detalhamento que concorrentes de maior investimento, não fazem feio e contam com boas possibilidades de customização da pintura, bem como um sistema de iluminação global que valoriza o brilho de uma boa lataria. Colocar um Dodge Viper em franca disputa com uma Ferrari, mesmo que não seja a lendária 355 F1 Spider, é um deleite para os fãs nostálgicos de NFS3 e outros similares da época. Felizmente aqui estão mais vistosos e, ao mesmo tempo, trazem consigo características que funcionam basicamente da mesmo forma que outrora, sem frescuras ou melindres.
A maior complicação do jogo, porém, está naquilo que faz dele um modelo de negócio sustentável. As cinco categorias de veículos disponíveis podem ser utilizadas nos mais diversos desafios e a campanha é desenhada para o progresso linear e contínuo, e com paciência, será difícil ficar defasado para o que vem adiante. Contudo, mesmo quem investe uns trocados aqui e ali para adiantar alguns processos terá que fazer escolhas, o que significa abandonar algumas carangas em detrimento de outras de maior potencial de teto no que se refere a desempenho. Entre meus dois Camaros, por exemplo, tive que abandonar o menos potente para conseguir melhorar o outro ao extremo com os recursos que tinha, algo relativamente comum em jogos nesse formato, mas ainda assim limitante demais.
A coisa piora quando, jogando em outros modos, essa dedicação compromete quaisquer escolhas a ponto de inviabilizá-las. Usar um carro com nível geral padrão, na médua dos 500 ou 600 pontos, é absolutamente impossível contra outro que esteja no patamar de 3.000, 3.500, mesmo com discrepâncias entre a habilidade dos competidores. Como dito, o jogo pouco pune a imprudência, e que também acaba resultando em pouca diferença em favor dos mais peritos. Uma competição justa depende, na maioria das vezes, da escolha do mesmíssimo carro por todos os participantes, e nem tanto daqueles que melhor se ajustam ao estilo de dirigibilidade do piloto.
Esta falta da possibilidade de equiparação entre os equipamentos em disputas contra outras pessoas, ou ao menos algo perto disso como em outros jogos como o já citado Disney Speedstorm, ou ainda como em jogos onde as diferenças existem, mas não invalidam os carrinhos mais modestos, como em Horizon Chase, resulta em uma garagem que vai ficando cada vez mais recheada de veículos tão incríveis quanto inúteis, pelo menos até que se tornem obrigatórios para alguma temporada e aí precisem do foco total do jogador. A partir disso, o colecionismo perde força, a dedicação se torna cada vez mais seletiva porque a dificuldade cresce à medida em que a margem de erro chega perto do zero. Quando correr com um carro pouco abaixo do máximo se torna uma clara desvantagem, Asphalt Legends Unite deixa de lado a diversidade e derruba parte do que construíra até então.
Todas as desvantagens, contudo, ainda são bastante relativas considerando o formato de comercialização do jogo. É uma proposta que demanda dedicação, feita para que o jogador se sinta comprometido com aquilo que começa. O volume de conteúdo não significa necessariamente que seja um jogo essencialmente grande, já que muito do que vemos é um bom exemplo de reaproveitamento das ideias próprias, mas é definitivamente uma jornada longa. Um mesmo circuito será utilizado dezenas de vezes com trechos diferentes, desenhos distintos e períodos do dia invertidos para tomadas de tempo, desafios 1×1, corridas normais e outras variantes, e isso funciona desde que o jogador saiba exatamente o que lhe aguarda.
Para além de sua estrutura cheia de armadilhas, o núcleo de Asphalt Legends Unite é extremamente competente e pode surpreender muitas pessoas que torcem o nariz para propostas free-to-play. Visualmente lindo e mecanicamente autêntico, o jogo traz carros incríveis em corridas cheias de ação e velocidade, se aproveitando de uma jogabilidade arcade deliciosamente ridícula como nos bons tempos. Fácil de aprender e nem tão difícil assim de dominar, é um jogo de corrida para quem não espera ter que ficar fazendo cálculo de desgaste de pneu ou do melhor balanço da distribuição dos freios e que, no final do dia, só quer dar quatro ou cinco giros laterais no ar enquanto aciona a turbina para explodir o carro à sua frente na reta final de uma corrida disputada. às vezes, esse é o tipo de simplicidade que queremos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Gameloft.
Veredito
Asphalt Legends Unite possivelmente será subestimado pela sua tradição em dispositivos móveis e pelo formato de monetização free-to-play. Mas quem lhe der uma chance encontrará um jogo visualmente bem polido com mecânicas que brilham em sua simplicidade objetiva, além de um estilo old school que anda fazendo falta no mercado mainstream.
Asphalt Legends Unite is likely to be underrated due to its mobile heritage and free-to-play monetization format. But those who give it a chance will find a visually polished game with mechanics that shine in their straightforward simplicity, as well as an old-school style that has been lacking in the mainstream market.
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