Qualquer um de nós que já andou de bicicleta, seja quando criança naquela mountain bike de 18 marchas cheia de adesivos emprestada do primo mais velho, seja quando adulto levando a saúde mais a sério, sabe que a experiência é algo que tem muito mais relação com compreender a dinâmica do próprio corpo e gerenciar o uso de força e energia, do que com velocidade e direção, mesmo em um cenário competitivo por diversão ou por esporte. É exatamente esta mentalidade que deve ser transportada para se vivenciar algo similar no mundo virtual, sobretudo em Tour de France 2024.
Longe de ser, portanto, um jogo competitivo parecido com qualquer outro de esporte a motor, onde a regra é sempre ser o mais rápido possível (salvo, é claro, as nuances de consumo de combustível e equipamento, só pra ficar no gerenciamento básico de jogos como o recente F1 2024), esse game, que já segue uma tradição anual de representar o maior evento do mundo nessa categoria, nos coloca no controle de ciclistas profissionais onde saber pilotar bem e no traçado mais adequado tem suas importância, mas é praticamente mínima diante da capacidade do jogador em lidar com as limitações da máquina mais complexa dentre todas, o corpo humano. Compreender, portanto, que este jogo é sobre gestão, e não potência, é a melhor e talvez única forma de se aproveitá-lo em sua plenitude.
Como uma típica franquia esportiva licenciada, há aqui alguns elementos bastante esperados, e mesmo quem nunca experimentou o subgênero reconhecerá várias de suas óbvias características. Somos apresentados a uma série de corredores conhecidos – alguns deles até famosos no segmento – em equipes bastante sedimentadas que ilustram a tradicional Volta da França anualmente. É uma corrida peculiar, longa e cheia de etapas, disputada por um volume grande de ciclistas que se organizam, via de regra, em times onde cada membro tem características próprias, como aquele que é mais constante, outros que conseguem proteger melhor seus aliados, o homem do sprint final de mais arranque, e assim por diante. Por mais que tenha um aspecto individual, é um esporte essencialmente coletivo.
Tour de France 2024, cuja distribuição está sob responsabilidade da Nacon, é bastante fiel a todos os aspectos mais tradicionais do evento da vida real. O traçado característico, os corredores e até a ambientação local revivem todo o clima que envolve este importante acontecimento do calendário e, desta forma, presa por um realismo inegociável, a começar pela construção de belos cenários, desde campos gramados, passando por vilarejos e trechos montanhosos cheios de curiosos e entusiastas, tudo cuidadosamente retratado para ser o mais fiel possível, ainda que se desconte um trabalho visual menos rico quando comparado a produções mais custosas.
Mas se por um lado, há todo um esmero genuíno no retrato do evento, há pouca preocupação com quem o faz, e salvo pela identificação quase envergonhada dos principais nomes do esporte, há pouco destaque para as estrelas do evento, sobretudo na construção e na representação dos modelos humanos do jogo. Sendo diferenciados basicamente pelas cores dos uniformes de cada equipe, os personagens aqui somem para dar lugar ao herói sem rosto, ou pior, de rosto genérico. Alinhados para dar início à corrida, é evidente que são basicamente clones de um único sujeito ali dispostos, algo que deixa claro que, diferente dos esportes espetaculosos nos Estados Unidos, como o futebol americano e o beisebol, os atletas aqui não recebem qualquer relevância. Este não é um esporte midiático e o jogo reproduz esse sentimento mais contido.
Sem modos alternativos ou corridas periféricas para dar opção aos jogadores mais casuais, tudo está focado na experiência da Volta da França em si. Há sim outras competições complementares que dão um pouco mais de substância para o conteúdo do jogo, mas nada que ofusque toda a importância do tour que dá nome à obra. Até porque em questão de quantidade, há muito o que percorrer. Com etapas girando em torno das centenas de quilômetros devidamente mantidas, são eventos de paciência e muito cuidado para não exaurir o seu ciclista antes da hora. Não à toa, é possível salvar o progresso no meio da etapa, sem a necessidade de terminá-la por completo, já que são poucos os casos onde temos tempo para iniciar e terminar esses trechos de uma só vez.
Esta gestão, aliás, é aquilo que mais dá trabalho, mas também é o que mais traz satisfação quando bem executada. Ao longo das horas de cada passagem, é no HUD lateral direito onde vamos encontrar nossa casa, e também nosso maior adversário. São algumas barras circulares, cada qual como funções específicas, que parecem complexas em um primeiro momento mas que depois de nos darmos mal algumas vezes, ficam bem esclarecidas. A vermelha central é dedicada ao nosso esforço mais imediato, aquele dedicado a sprints e tiros mais curtos. Ao usarmos o ataque, ou seja, ao darmos aquela força a mais em pé na bicicleta, essa barra se consome mais rapidamente, e seu uso precisa ser muito bem administrado porque ficar sem força para disputas de 100 metros é a receita para a derrota.
Já a barra azul está relacionada ao nosso estado de exaustão a longo prazo. Pedalando ser parar, esta barra se consome constantemente, principalmente em momentos de subida. Pedalar sozinho é a receita para o esgotamento precoce e assim que esse contador se esgota, sobra só aquele gás do ataque. Se ambos se exaurirem, entramos em estado de estafa, com direito a tela em preto e branco, onde praticamente paramos de pedalar até que a barra vermelha se encha por inteiro. Se continuarmos esperando, a barra azul começa a se encher também, mas isso significa andarmos por muito tempo tão vagarosamente que é inevitável perder posições e permitir que os dianteiros abram uma vantagem difícil de tirar depois. Por isso, é fundamental nunca permitir chegar a este estado, porque a recuperação é improvável.
Esse sistema de cansaço controlado é a essência do jogo, já que em relação ao traçado, há sim curvas mais acentuadas aqui e ali, alguns pontos de frenagem mais brusca, controle melhor do equipamento, mas nada que seja realmente preponderante em 99% do percurso, além de tudo estar cercado por paredes invisíveis que impedem que saiamos da estrada de verdade. A linha guia de traçado perfeito, aliás, que se tornou regra em jogos de corrida de todos os tipos, aqui é uma mera sugestão, a não ser que estejamos competindo por espaço com outros adversários do mesmo pelotão, porque aí sim a posição na pista importa. Afinal, se as descidas são um grande ponto de alívio no esgotamento, o verdadeiro segredo para economizar energias é avançar no vácuo dos adversários. Pedalar de cara para o vento é praticamente um suicídio.
Isso significa que alguns comandos que seriam esquecíveis se tornam fundamentais, como o de grudar no adversário da frente. Segurar o botão correspondente significa segui-lo automaticamente, mantendo velocidade e direção semelhantes, o que é um risco calculado, já que se ele tiver mais energia que você, vai ficar em vantagem, mas em condições ideais, vai cansar mais rápido por estar em desvantagem tática. Ao mesmo tempo, esta automatização pode tornar a experiência mais enfadonha, já que nos tira qualquer responsabilidade de guiar ou de pedalar por nossa conta. É praticamente um estado de piloto automático que, somado ao longo traçado, pode entediar até os mais apaixonados pelo esporte a pedal.
Não há muitas alternativas para se alcançar a vitória, entretanto. Evitar o arrasto (olha aí as aulas de física do ensino médio fazendo sentido) andando em um pelotão é mais do que obrigatório para a maior parte da corrida. Descansar nas descidas deitando na bicicleta, por mais sedutor que seja pedalar e voar baixo nestes momentos, também pode recuperar um pouco do que foi perdido. E ainda há alguns tanques extras, tal qual poções de cura em um jogo de ação, que podem ser acionados em momentos de emergência, quando não restam muitas alternativas naturais para se recuperar o fôlego. No mais, é ser conservador e cuidadoso, manter conexão com os primeiros colocados, mas jamais se expor demais, ao menos até ter certeza que o linha de chegada está logo à frente.
O maior desafio do jogo é, portanto, nos manter interessados por jornadas longas e relativamente calmas, à exceção dos primeiros e dos últimos 100 metros de cada etapa, e talvez dos trechos em descida quando alcançamos velocidades altas em curvas mais acentuadas. Exatamente por isso, o cuidado com o fôlego de nosso corajoso ciclista demande tanta atenção, porque sinceramente há tantas distrações e artifícios para se divertir aqui quanto em uma maratona na vida real. Em outras palavras, o maior inimigo do jogo é aquilo que ele fundamentalmente é, porque ao representar realisticamente um esporte de longa duração e de poucas ações distintas, ele pouco tem a oferecer além de se pedalar e se descansar, e descansar e pedalar um pouquinho mais.
Entretanto, a gestão de equipe, por sua vez, é um atenuante ao tédio, já que jogar com os seus companheiros IA é uma ação estratégica bem funcional. Você pode, literalmente, parar a ação para cuidar de cada membro do seu time, podendo enviá-lo ao pelotão adiante, ou mandando ele tomar a sua dianteira para reduzir o seu cansaço, ou ainda protegê-lo da ação adversária para que você tenha mais espaço nos momentos cruciais de decisão. Se normalmente a equipe corre por um dos seus pilotos, você pode assumir a liderança e comandar seus companheiros para favorecê-lo no final, ou, se for altruísta o suficiente, trabalhar para que um deles vença. É possível inclusive se revezar no controle literal de seus aliados, se assim desejar, e fazer você mesmo o que espera dele. Isso tudo ajuda a dar dinamismo ao game, mesmo que não tome lá muito tempo na média final.
Pelo lado do jogador, a expectativa é um pouco mais complicada, porque aumentar o nível de dificuldade só dá menos margem para erros estratégicos diante uma IA virtualmente perfeita, o que quer dizer que quanto mais difícil, mais enfadonha e dura é a tarefa de cuidar do esgotamento físico do piloto, exaurindo todas as chances de se divertir com o inesperado, o inusitado, o ousado, o aleatório. Apertar o passo buscando a emoção da ultrapassagem é a melhor coisa a se fazer no jogo, e só faz sentido, literalmente, nos 10 segundos finais de um percurso que atravessa horas de gameplay. Para o nicho ao qual o jogo se dedica, um deleite. Para a outra grande parte dos jogadores, é provavelmente uma escolha difícil de se fazer.
Há desta vez, ao menos, um modo multiplayer realmente consistente. Se nas versões anteriores o aspecto competitivo contra outras pessoas se limitava a elementos assíncronos, como recordes globais e coisas do tipo, aqui finalmente há um modo para se correr contra outras pessoas reais. Como nada nesse jogo é tão divertido assim, são permitidos no máximo seis pessoas por disputa, o que tira totalmente a graça das passagens onde, normalmente, dezenas de corredores disputariam cada centímetro de asfalto. Nas poucas vezes que consegui uma partida, era basicamente um pelotão andando junto até a reta final onde quem guardou mais energia se saiu vitorioso, com nenhum espaço para o improviso e pouco tempero.
Tour de France 2024 é um daqueles casos onde o jogo é bastante cuidadoso em fazer tudo certinho, com todas as coisas no seu devido lugar, emulando o esporte real e, mesmo assim – e possivelmente por isso mesmo – se mostre tão suculento quanto um pastel de chuchu assado no forno. Não faz mal a ninguém, não incomoda, mas tampouco é marcante. O game funciona, adapta bem suas condições para os controles, emula direitinho os eventos onde se baseia, mas ao cumprir com todas as expectativas, deixa a diversão de lado. Você pode ser um admirador do esporte e gostar, se envolver, se permitir imergir, se deixar levar pela mistura entre estratégia e ação proposta, mas esse é um perfil muito específico.
Para os demais, uma sugestão: assista o vídeo que abre esta análise com o primeiro trecho de um único evento e se isso lhe for suficiente, vá com tudo, porque todo o resto do jogo é exatamente a mesma coisa, com uma ou outra mudança de paisagem bem sutil. Você pode adentrar uma etapa mais avançada do tour completo, pode seguir do começo ao fim, pode adentrar somente as corridas de sprint, e ainda assim, será um verdadeiro fã se não se cansar em algum momento e olhar desanimado para a quantidade de quilômetros restantes. Ironicamente, Tour de France 2024 falha como entretenimento, não por deixar de passar a sensação de sua contraparte real, mas sim por fazer exatamente o contrário, e não propor nada para além disso.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Nacon.
Veredito
Tour de France 2024 segue evoluindo tudo o que as versões anteriores apresentaram, e sabe bem que investir no sistema de gestão da corrida é aquilo que o faz diferente de outros simuladores esportivos. Pena que isso seja exatamente o que tira a diversão do jogo para qualquer um que não seja um fã fervoroso da modalidade no mundo real.
Tour de France 2024 continues to evolve everything that previous versions have introduced, and it’s well known that investing in the race management system is what makes it different from other sports simulators. Unfortunately, this is exactly what takes the fun out of the game for anyone who isn’t a die-hard fan of the sport in the real world.
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