Existe uma categoria de jogos que, por pura qualidade de sua narrativa, dispensa a necessidade de outras mecânicas que complementam a experiência. Pejorativamente chamados de walking simulators, esses projetos apenas tem sua história, ambientação e arte para proporcionar uma jornada memorável ao jogador. Jogos como Gone Home, Firewatch e Stanley Parable são títulos prestigiados que não precisam se ancorar em sistemas de gameplay convencionais para funcionar.
A coisa é um pouco diferente quando o gênero é terror. Embora existam algumas pérolas, como os jogos da Chilla’s Arts (que eu particularmente gosto bastante), esse subgênero de walking sims assustadores é recheado de títulos bem esquecíveis. Portanto, quando um jogo desse nicho se destaca, há boas chances de ser minimamente interessante.
Talvez eu esteja sendo um pouco injusto a comparar jogos curtos e independentes de terror com um projeto AA que tem investimento de uma publisher, mas sinto que o contexto foi necessário para abordar o que eu vou falar de Still Wakes The Deep.
Publicado pela Secret Mode e produzido pela The Chinese Room (Amnesia: A Machine for Pigs, Everybody’s Gone to the Rapture), Still Wakes The Deep é um jogo em primeira pessoa com um forte enfoque narrativo. O jogo não possui combate e a maioria das ações são feitas por interação com o cenário, como acionar botões, puxar manivelas, girar válvulas e coisas do tipo. A filosofia do personagem principal segue a ideia de ser apenas “mais um cara”, desprovido de qualquer habilidade especial, poderes ou coisas do tipo.
O game se passa em 1975, inteiramente em uma plataforma de extração de petróleo, chamada de Beira D. Nosso protagonista se chama Cameron McLeary – apelidado de Caz por sua esposa e colegas de trabalho. Caz é eletricista e cuida de partes específicas do funcionamento elétrico da plataforma, fazendo trabalhos majoritariamente ordinários. A dinâmica entre os funcionários e seu respectivo chefe é clara, dando a entender que o trabalho na plataforma é precarizado e a Cadal, empresa responsável pela plataforma, não aparenta ligar muito para a insalubridade do lugar.
Nas horas iniciais do jogo, encontramos alguns documentos sobre a organização sindical daqueles trabalhadores e como o sindicato estaria planejando uma greve. Corroborando com isso, uma das primeiras interações com Rennick, chefe de Caz e da equipe, é do sujeito dando um esporro no protagonista por conta de sua performance no trabalho. O confronto escala e a conversa termina com Rennick demitindo Caz por conta disso.
O que seria apenas mais um dia de conflitos trabalhistas se transformou em um gigante pesadelo. Um grande tremor abala as fundações da plataforma, causando pânico entre os funcionários enquanto tentavam desvendar o que havia acontecido. Um vazamento de gás? Um acidente que acarretou em uma explosão? … Ou algo pior?
Enquanto Rennick tentava “apaziguar” a situação insinuando que era um problema trivial e que todos voltariam ao trabalho em pouco tempo, os trabalhadores da plataforma logo iriam descobrir que a situação era bem pior do que o imaginado. Alguma coisa havia se apossado da plataforma, consumindo-a lentamente. Pessoas começavam a desaparecer, alertas de falhas técnicas da parte estrutural e elétrica da plataforma começavam a apitar em todos os painéis de controle.
Caz começa a se deparar com pessoas mortas e brutalizadas dos piores jeitos possíveis. Tentando fazer algum sentido do que está acontecendo, Caz acaba encontrando Roy – o chefe de cozinha do lugar que também é amigo de Caz e da família do protagonista. Ambos se refugiam na cantina da plataforma, avaliando o que pode ser feito. A situação começa a escalar exponencialmente para pior já que os problemas da estrutura do lugar começam a ficar mais severos.
Na parte exterior, uma matéria orgânica massiva toma conta de toda a plataforma. Por dentro, longos tentáculos e bulbos gigantes de carne invadiam os cômodos e prendiam quaisquer azarados que ali passassem. Nessa hora, o jogo começa a ficar mais claro em suas mecânicas de gameplay e navegação. Por não possuir armas ou qualquer outro método de defesa, Caz só consegue se esconder e usar itens para distrair as criaturas que agora rondam a plataforma.
Fui bem vago ao descrever a ameaça pois o próprio jogo se esforça para complicar o entendimento dela – quase como uma criatura lovecraftiana. À medida que o jogo progride, os inimigos lentamente ficam mais compreensíveis: os próprios colegas de trabalho de Caz se transformaram em amalgamado bizarro de matéria orgânica.
É difícil até de explicar, mas consigo dar duas boas referências. A primeira é Carrion, o jogo indie lançado em 2020 e publicado pela Devolver Digital. A criatura principal de Carrion é bem parecida com a desse jogo, só que muito mais grotesca por Still Wakes The Deep ser puxado pro realismo. E a outra referência é a do filme Aniquilação, do diretor Alex Garland. A direção de arte em Aniquilação, com suas criaturas e ambientação geral, representa quase fidedignamente o caminho que Still Wakes The Deep seguiu. Não me surpreenderia que tivessem usado os visuais do filme no moodboard de referências para o jogo.
O jogo agora se torna uma caça de gato e rato. Caz precisa se esgueirar pelos cantos e tubulações, trabalhar em equipe com outros sobreviventes para estudarem um jeito de sair da plataforma e evitar os monstros. Uma coisa que o game faz muito bem é construir a relação do protagonista e seus colegas – vê-los naquele estado monstruoso e ainda sim Caz chamá-los pelo nome é estarrecedor. Todos aqueles personagens têm nomes, motivações e uma história, e o jogador é lembrado disso constantemente.
O passo em que as coisas acontecem é ótimo. Sem perseguições longas demais e segmentos dosados de exposição da história. Com exceção das horas finais onde eu senti que esse pacing sofreu um pouco, todo o resto mantém uma cadência envolvente. Fator que auxilia nisso também é o jogo ser estritamente linear, com pouco ou quase nada de espaços mais abertos para exploração. Não há coletáveis, upgrades ou nada parecido. O jogador tem aquela história e nada mais. Como disse no começo da análise: o enfoque aqui é exclusivamente na narrativa.
Da parte técnica, sinto que o jogo precisava um pouquinho mais de polimento. Tive que recarregar o checkpoint algumas vezes por conta de bugs, como o áudio sumir ou o personagem ficar preso na geometria do cenário.
O framerate também é inconsistente em alguns momentos. Vários objetos animados possuem uma taxa de frames diferente da que o jogo está rodando, dando uma estranheza na fluidez da imagem. Fora isso, não encontrei problemas críticos.
Ao meu ver, mesmo sem grandes mecânicas de gameplay, Still Wakes The Deep consegue brilhar e mostrar o poder de uma boa escrita. Com personagens interessantes, uma história cheia de mistérios e a dose certa de tensão, esse jogo é uma fácil recomendação para quem gosta de terror.
Isso também demonstra a experiência do estúdio com esses projetos, provando que walking simulators podem ser experiências super envolventes. Mesmo sendo bem curto (possível terminá-lo em menos de 4 horas), vale a experiência. O estúdio The Chinese Room entrega aqui mais um projeto de qualidade.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Secret Mode.
Veredito
Still Wakes The Deep dispensa qualquer sistema de gameplay tradicional e consegue se sustentar apenas com o poder de uma boa escrita e doses de tensão nas horas certas.
Still Wakes The Deep doesn’t use any traditional gameplay system and manages to sustain itself solely on the power of good writing and doses of tension at the right times.
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