Lá se vão mais ou menos cinco anos desde que recebemos com surpresa (e um certo entusiasmo) um game até então desconhecido chamado Ion Fury, alardeado como um autêntico herdeiro dos jogos de ação em primeira pessoa da segunda metade dos inesquecíveis anos 1990. Considerado como um sucessor não declarado de clássicos como Duke Nukem 3D e similares, o jogo não só chamou a atenção de toda uma geração ansiosa por experiências da velha guarda, como acabou como um destaque em todo um gênero nostálgico que convencionamos chamar de boomer shooter.
Eis que chega até nós uma continuação direta do divertido jogo estrelado por Shelly “Bombshell” Harrison, que como podemos ver pelas artes promocionais do jogo, adota toda uma estética de uma estrela de ação marrenta e porradeira retrofuturista. Depois de um tempo considerável em coma, ela é despertada na marra por um velho conhecido e, usando um potente braço biônico, não tem muito tempo para se adaptar a um mundo diferente daquele que ela havia deixado depois de enfrentar o terrível Jadus Heskel, e se vê em uma encrenca enorme para proteger um artefato lendário conhecido como Demon Core, uma tarefa que ela logo perceberá que não tem nada de fácil.
Surpreendentemente longa, a campanha guiada pela heroína dura algo em torno de 10 à 12 de horas, nos levando a regiões bastante diferentes dos EUA, e tem uma certa aura de road game (jogo de estrada ou jogo de viagem, em traduções livres) ao sempre nos levar adiante por diferentes localidades em um movimento contínuo de progressão e escala da trama. Se a primeira missão nos testa em uma fuga do laboratório onde estávamos sendo mantidos desacordados, e nos coloca diante alguns adversários pouco amistosos, não demora para tenhamos missões que envolvam a invasão de complexos industriais, bases militares ultra protegidas e propriedades rurais suspeitas. O sentido de escala, inclusive na comparação com o seu antecessor, é enorme e muito recompensador para quem decide investir.
Sem nenhuma vergonha de elencar plot twists rocambolescos, e de trazer elementos fantásticos para si, Phantom Fury me envolveu de uma forma que eu jamais esperaria não por propor uma história pesada, densa ou pretensiosa, mas por saber conduzir uma boa aventura como guia de uma jornada cheia de adrenalina. Melhor que isso, ainda guarda espaço para lidar com a mente atormentada de Bombshell sem parecer querer se levar a sério demais. Quase que na contramão da indústria atualmente, há uma preocupação em evitar parar o jogo demais com longas cenas de corte, diálogos expositivos e artifícios do tipo, o que torna tudo mais dinâmico e tão profundo quanto o interesse do jogador em saber os meandros do que está acontecendo.
Ao mesmo tempo, nota-se um amadurecimento temático quando a comparação é o que veio antes. Ainda vamos ver a protagonista tirando sarro de seus inimigos enquanto os desmembra sem dó – não há economia no gore aqui – e as conversas com seus aliados nunca caem em um existencialismo raso, mas nesta sequência, esta pouco nobre heroína se coloca muito mais como uma adulta petulante, com seus problemas e suas virtudes, do que uma criança birrenta de quinta série em um corpo brutamontes, uma armadilha na qual muita gente que tenta emular o gênero cai. Mesmo que esse estudo de personagem fique um pouco de lado à medida que avançamos na campanha, é notável o quanto há um aperfeiçoamento da personalidade de alguém que teve tão pouco tempo para ser desenvolvida em tela nesta ainda jovem franquia.
Este refinamento do tratamento dado à trama faz com que, guardadas as devidas proporções, Duke Nukem encontre Half-Life em uma mistura equilibrada que eu jamais teria imaginado, e que agora não vejo como ninguém conseguiu algo parecido antes. Claro que para chegar ao nível da compreensão em camadas do clássico da Valve faltam ainda muitos esteróides para Phantom Fury, e muito provavelmente não deve ser essa a pretensão dos desenvolvedores, mas há toda uma construção ácida de mundo que lembra, com alguma boa vontade, do ritmo alucinado daquele game, bem como toda a problemática central se abrindo para caminhos pouco convencionais. A coisa descamba um pouco no terço final, quando toda a contextualização fica de lado para valorizar a ação, mas ainda há semelhanças notáveis e bem-vindas.
Esta percepção é ampliada também pelo aspecto da jogabilidade, uma das mais divertidas para um jogo de tiro em primeira pessoa que vejo em muito tempo. Diferente da cadência estratégica de jogos mais modernos, aqui a vantagem está ao lado da ousadia comedida. Com movimentos fluidos e ótima precisão de controle, o sistema de gameplay segue o que já se pode esperar dadas as óbvias inspirações do projeto: o gatilho direito é responsável por atirar, enquanto o esquerdo aciona uma segunda função, quando liberada, da arma equipada. A metralhadora, por exemplo, pode entrar em modo duplo, enquanto o shotgun pode disparar um flash que atordoa a visão dos inimigos. Em arroubos de coragem, tudo se encaixa bem em um modus operandi estilo Rambo, mas com ressalvas, já que basta pouco dano para cairmos humilhados.
A movimentação é bastante funcional, mesmo que seja necessário ajustar a velocidade para se girar com mais agilidade. Você pode ainda abaixar, se esgueirar, saltar e interagir com dispositivos, como computadores, painéis e objetos. Para o combate corpo-a-corpo, o soco biônico é uma ótima solução, mas que precisa ser bem dosado porque tem o seu tempo de cooldown, algo que pode ser acelerado com algumas melhorias a serem desbloqueadas em uma árvore de habilidades modesta, mas útil. Completam os recursos básicos de combate um bastão eletrificado (que serve não só para derrubar distraídos como também para acionar alguns tipos de dispositivos) e granadas para controle de grandes multidões.
Quando inventa demais com esses recursos adicionais, Phantom Fury patina. Logo no início aprendemos a carregar objetos para criar plataformas, saídas secundárias e acesso a espaços opcionais, mas o modelo de escalada é pouco funcional na maioria dos casos. A física do jogo fica maluca quando empilhamos coisas umas em cima das outras, e tentar subir em certas beiradas é muito mais complicado do que em outras. O resultado é que você pode perder muito tempo tentando subir em beiradas bobas onde há um item importante ou uma tarefa complementar, enquanto deixa de realmente fazer algo que valha a pena de verdade. Da metade da frente, decidi deixar de lado coisas desnecessárias para evitar me irritar com bobeiras.
Por outro lado, o que brilha de verdade é o arsenal invejável com o qual contamos. Quase que naturalmente, vamos adquirindo armamentos dos mais variados, a grande maioria consagrada pelo gênero, e que guardam para si vantagens e potencialidades únicas. Sem que uma se sobressaia totalmente à outra, cada arma é útil para os diferentes perigos a serem enfrentados, desde o inimigo mais comum até os com poderes inesperados ou defesas acentuadas. E se a munição não chega a ser infinita, também não tem miséria e é bem raro que alguma das nossas armas fique vazia por muito tempo. O combate é, em resumo, a melhor parte do jogo, e sabendo disso, Phantom Fury te fornece tudo o que é necessário para se divertir com a carnificina descontrolada.
E se normalmente precisamos decidir entre levar uma arma leve de longo alcance ou uma parruda para batalhas contra grandes hordas; se levamos uma bazuca para inimigos enormes ou a pistola para uma praticidade mais objetiva; a boa notícia é que não é necessário decidir entre uma coisa e outra, porque a lógica é a expansão, é o “e” e não o “ou”. Nada de deixar coisas para trás, nada de se preocupar com o peso, nem com o realismo do que se pode ou não carregar consigo. O arsenal completo fica ali, logo ao alcance de uma roda de equipamentos que, se não é das mais práticas a princípio, pode ser dominada para a troca rápida em situações extremas. Armas mais pesadas podem nos deixar mais lentos quando em mãos, mas nada significativo.
Tudo isso para enfrentar as missões mais absurdas e deliciosamente clichês que o mundo dos games já produziu. Quer invadir espaços labirínticos e apertados, com a necessidade de encontrar cartões de acesso perdidos do outro lado do cenário? Tem. Gosta dos campos abertos e tiroteio com cobertura? Tem também. Aquela boa e velha fase em cima do trem em movimento? Tá lá. Veículos armados para combate sobre rodas? Opa. Enfrentar soldados aos montes? À vontade. Monstros e mutantes? Não faltam. Robôs? Claro. Algo que eu ainda não disse e que você espera em um boomer shooter? Provavelmente estará lá também. O maior benefício de não se colocar limites lógicos é que tudo pode funcionar desde que quem escreve esteja realmente disposto a criar a coerência, que nem precisa ser tão argumentada assim, para tudo fazer sentido em si.
A estruturação das fases do jogo, entretanto, se prova menos inspirada que aquilo que a preenche. São várias as passagens que trabalham mal com a condução, algo ainda mais importante em um jogo com forte apelo linear, e o level design acaba flutuando entre os corredores em linha reta e algumas passagens de back tracking confusas e pouco lógicas. São muitos os casos onde a única dica de pra onde temos que voltar para continuar a trama é onde estão spawmando novos inimigos do nada, uma forma rudimentar de nos mostrar pontos de interesse em um mapa. Em outros casos, aparições escriptadas dependem de pisarmos em um lugar pouco óbvio só pra que uma criatura saia da parede em um jump scare, abrindo assim um acesso antes inexistente.
Soma-se tudo isso à longevidade excessiva desses níveis, alguns que chegam a durar mais de uma hora cada, e o jogo parece criar algumas barrigas para alargar o seu tempo de uma forma mais truculenta, levando o jogador a conflitos que acabam se tornando mais repetitivos do que deveriam ser. A objetividade das passagens de combate acaba sendo suprimida por essa organização do cenário excessivamente pesada. Lugares labirínticos e outros espaços, vez ou outra, podem ser melhor articulados, mas essa não é a regra. Em dada altura da campanha, por exemplo, o jogo me fez passar por um lugar duas ou três vezes, só para depois eu coletar um item que faria com que o objeto que parecia alegórico funcionasse. Mesmo que haja uma compreensão que as inspirações onde os desenvolvedores se apoiam também tinham suas questões com a construção da progressão, nada justifica um desenho de mundo deficiente assim.
E se tudo isso traz de volta as melhores (e algumas das piores) lembranças de quando jogos do tipo estavam em alta, as escolhas artísticas adotadas aqui são nada menos que espetaculares e, estas sim, tiram o melhor proveito possível do estilo escolhido. A princípio, tudo pode parecer uma tentativa de emular o visual low poly da geração PSOne e PS2, com personagens humanos se comportando quase como bonecos articulados com bordas e vértices aparentes, mas o que se desdobra ao longo da campanha são cenários poderosos, um ótimo uso de cores e texturas interessantes. A falta de preenchimento em lugares mais amplos e o vazio em campos abertos fazem parte do charme, mas um olhar mais cuidadoso principalmente em certos cenários, como escritórios e residências, revela um cuidado carinhoso com a ambientação.
Se por vezes, jogos com um forte apelo nostálgico se apoiam na baixa qualidade intencional de modelos como uma desculpa para alguns desleixos, Phantom Fury dá uma verdadeira aula de como fazer isso e ainda manter a beleza sem perder o estilo adotado. Chega um momento onde simplesmente esquecemos que aqueles soldados tem a mesma cara, ou um monstro mais parece ter saído da primeira trilogia de Resident Evil, porque tudo funciona dentro do mundo do jogo. Uma xícara de café com a circunferência hexagonal não é só um descuido ou limitação, é realmente uma escolha que faz sentido praquele espaço. Se uma ou outra textura borrada acaba incomodando, se a repetição de padrões em certos ambientes os deixam menos vivos, isso acaba se tornando menor no reconhecimento do todo, coeso por si. Nada disso é desculpa, vale ressaltar, para alguma quedas drásticas de quadros, mas quando tudo funciona bem, é um deleite.
Seguindo esta mesma linha, o trabalho de vozes – não disponível em versão brasileira, infelizmente, mas devidamente legendado para o nosso português – tem aquela canastrice boa dos filmes de ação B, algo que combina bastante com a trilha musical que esbanja boas composições para passagens mais agitadas. O sonoplastia deve um pouco no que se refere à ambientação, principalmente em espaços naturais, mas ganha destaque quando o tiroteio se desenvolve em grande escala, com armamentos, explosões, motores e gritaria tomando conta do espaço. A mixagem de som é, como um todo, tão valorizada quanto o visual, algo nem sempre verdadeiro em produções destas proporções, e vale a pena usar um bom sistema de som, quiçá um headset, para extrair o que há de melhor em emoção no jogo.
Na soma dos fatores, a média é bastante positiva. Ainda há que se considerar alguns bugs insistentes, como ficar preso vez ou outra nas quinas do cenário, o comportamento errático de alguns inimigos e coisas do tipo, mas elementos assim devem ser corrigidos em atualizações futuras. Por outro lado, a estruturação problemática do jogo é tão permanente quanto suas melhores qualidades, como uma história objetiva e sem floreios servindo de base para passagens épicas de ação e tiroteio direto e divertido. Phantom Fury consegue se destacar dentre uma coleção de FPS retrô que estão surgindo nos últimos tempos porque consegue fazer do saudosismo uma potência, não uma desculpa esfarrapada, algo que já faz desse um dos melhores boomer shooters já feitos, uma sequência ainda melhor do jogo anterior.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela 3D Realms.
Veredito
Phantom Fury cumpre satisfatoriamente aquilo que promete ser. Com fluidez na jogabilidade, ação constante e uma trama que serve de base para a progressão contínua, o game supera um level design duvidoso para entregar um dos melhores boomer shooters da atualidade.
Phantom Fury satisfactorily fulfills its promise. With fluid gameplay, constant action and a plot that serves as the basis for continuous progression, the game overcomes dubious level design to deliver one of the best current boomer shooters.
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