Quando o jogo de SAND LAND foi anunciado pouco menos de um ano antes do seu lançamento, em junho de 2023, ninguém poderia imaginar que meses depois o mundo perderia o autor da obra original publicada em 2000, Akira Toriyama, consagrado e reconhecido mundialmente graças a sua criação mais popular, a franquia Dragon Ball. Este game, aliás, é parte de um projeto multiplataforma que inclui também animações e outros produtos derivados, e agora se torna, sem querer querendo, um tributo ao grande mestre mangaká que sim, merece todas as homenagens.
Ambientado em um mundo pós-apocalíptico onde humanos e demônios compartilham a contragosto uma terra árida e a escassez do bem mais precioso do planeta, a água, conhecemos Rao, um xerife já de idade avançada que, cansado de ver seu povo sofrer com a pouca disponibilidade e o alto preço do líquido da vida, decide ir atrás de uma possível fonte, já que ao ver pássaros que se alimentam de criaturas aquáticas migrando, deduz que haveria um lugar ao sul com o volume suficiente para abastecer a população. O problema é que o deserto não é só seco e hostil pela natureza, mas também está cheio de perigos como criaturas agressivas e bandidos de todas as espécies. Ir sozinho não é uma opção.
É nesse momento que ele decide dar um passo ousado para pedir ajuda de onde menos se esperaria: da vila dos demônios, onde vivem criaturas sombrias sempre deixadas à margem da sociedade, incluindo o próprio cramulhão, Lucifer, e seu filho, Beelzebub. Propondo um acordo de cooperação e compartilhamento dos pretendidos benefícios da missão, ele ganha a adesão do próprio príncipe, que leva junto um dos seus melhores amigos, o velho larápio Thief. O trio então embarca em uma jornada de busca e descobrimento, cheia de reviravoltas, revelações e, principalmente, da construção de uma amizade improvável que vai bagunçar as estruturas de poder daquela terra desolada.
A premissa antevê uma aventura de viagem típica que, pegando um termo emprestado do cinema, o ressignifica para o nosso contexto e se estabelece, portanto, como um road game, ou um jogo de estrada, travestido de um RPG de ação em um mundo semi-aberto com pitadas generosas de inspiração temática e estética em Mad Max e produções similares. Em SAND LAND, assumimos o controle principalmente do próprio Beelzebub, seja andando a pé, quebrando o pau contra inimigos aleatórios, máquinas e chefes, ou pilotando um dos vários veículos disponíveis no jogo.
Os demais personagens, vez ou outra, podem ser protagonistas de uma tarefa aqui e outra ali, como por exemplo o Thief, especialista em roubos furtivos, mas no geral é o herdeiro do inferno que protagoniza as principais tarefas enquanto os outros assumem o suporte tanto na exploração como em batalha. O modelo de party, portanto, é fundamental para o absoluto controle do campo em suas mais diversas configurações, e tanto as habilidades ativas quanto passivas a serem desbloqueadas para ambos os nossos companheiros tem um papel importante no controle de multidões e no cumprimento dos objetivos em comum. Entretanto, não espere por tanta ajuda assim, porque na maior parte do tempo, a coisa depende mesmo é do que a gente faz.
Se a história original se mostra objetiva e bastante direta – você pode ler do começo ao fim em duas horas, quiçá menos – seria necessário estabelecer um pouco mais de sustança para que o jogo pudesse girar na casa das duas dezenas de horas em sua campanha básica, e é nesse ponto onde a essência original acaba se perdendo. SAND LAND, o original, é uma típica aventura focada, onde cada ação visa somente uma direção, um objetivo específico, que é chegar ao extremo sul do mapa. Ao se propor algo que se preocupa em dar tempo ao jogador, em apresentar um espaço para ser explorado, conhecido e reconhecido, perde-se o ritmo, um dos trunfos dessa leitura.
O maior problema do jogo, contudo, não está neste ajuste da cadência, mas sim no preenchimento do recheio que promoveria essa maior interação com o mundo que estamos tentando salvar. A maior parte da missão principal se passa, claro, em terras desérticas, e explorar esse grande nada de areia é das atividades menos prazerosas que pude experimentar em jogos do gênero. Você vai encontrar criaturas fantásticas como lagartos crescidos, leões ferozes, escorpiões robustos (afinal, todo jogo com deserto é obrigado a ter esse inimigo, certo?) e alguns bandidos e soldados sem nome espalhados por aí, dando algo em que nosso herói possa descer a porrada ou atirar com o potente tanque 104.
Tais inimigos, porém, são tão desinteressantes quanto o próprio espaço onde habitam. Repetitivos, bobos e genéricos, só apresentam dificuldade quando em quantidade elevada ou na eventualidade de ter um mini-chefe dentre eles com a barra de vida bem duradoura. Ainda que esteticamente eles até funcionem dentro do contexto, sua presença é claramente um engodo, um artifício pobre de preenchimento da diegese, e que nada tem a contribuir substancialmente para o todo. Ao se libertar do mundo original e nos levar para terras mais verdejantes, o cenário melhora proporcionalmente ao decaimento da narrativa. Aparentemente, neste jogo, ou se tem algo bonito a se mostrar, ou se tem algo interessante a se contar. Nunca ambos ao mesmo tempo.
Por outro lado, alguns NPCs parecem mais organicamente integrados ao todo, incluindo alguns generais que veremos só na parte final da caminhada. Destaque para os cidadãos de algumas cidades, sobretudo a base a qual teremos a responsabilidade de reconstruir, Spino, onde podemos nos recompor de forma segura entre uma missão e outra. Dentre essas boas adições, está Ann, uma perita em mecânica que entra para o time logo na primeira grande missão do jogo, a de adquirir o icônico tanque de guerra usado pelo grupo, para ter um papel importantíssimo no aspecto de customização veicular, além de ser alvo de algumas piadinhas bem cafonas sobre ser uma mulher bonita. Como tais máquinas tem um papel central na trama, quase como personagens por si só, há que se dar uma atenção a mais para esse aspecto.
Se no mangá, tudo se resume a um único meio de locomoção logo quando o carro do xerife é destruído, aqui há uma série de outros meios de transporte a serem adquiridos e adaptados para tarefas específicas, como alcançar locais altos, por exemplo. Beelze (como carinhosamente Rao apelida o príncipe das trevas) é ágil e pode dar seus saltos duplos, correr bem rápido e fazer algumas peripécias acrobáticas, mas nem sempre ele alcança certos locais de interesse, e daí a inclusão de novas máquinas e, consequentemente, é quando uma perita mecânica se faz necessária ao grupo.
Quando não está tentando embarrigar a jornada, SAND LAND se mostra bastante fiel à obra original, entretanto. Frases e situações são tiradas diretamente das páginas escritas por Toriyama, e as passagens mais marcantes estão todas lá, por vezes recontextualizadas para caber na trama reorganizada, mas mantendo toda a sua carga dramática. O passado de Rao é um dos pontos de virada principais da história, dando-lhe motivações o suficiente para essa empreitada, enquanto os vilões, que ficam esquecidos pelo jogo até chegarmos lá pela metade do mapa, são subaproveitados pelo potencial que eles teriam em oferecer situações de risco real para os heróis. Narrativamente, portanto, os méritos são quase todos herdados do mangá, e as inconsistências derivam desse alongamento desiquilibrado das situações de desenvolvimento do roteiro.
Por sua vez, o aspecto da jogabilidade também deixa bastante a desejar. A movimentação de Beelzebub é estranha e arisca, e mesmo não sendo particularmente difícil controlá-lo, é tudo meio impreciso. O controle da câmera está longe de ser suave e pode causar até um certo desconforto em longas sessões de jogatina pela trepidação caótica, principalmente em campo aberto, enquanto o sistema de combate corpo-a-corpo segue a regra dos ataques fraco e forte compondo combos simples e repetitivos, que podem eventualmente ser melhorados, mas nunca deixam de ser qualquer-coisa. As poucas partes que exigem um pouquinho mais de plataforma e precisão nos saltos são só irritantes e demandam uma certa paciência, porque estas de fato são alongadas para muito além do necessário.
O que há de melhor no gameplay está no combate veicular. Não que os controles do tanque e de outros meios de transporte sejam particularmente excelentes nem nada disso, mas são mais divertidos, e alternar entre dois tipos de armamento principais contra hordas inimigas apresenta uma dose de variedade que não existe quando estamos à pé. Ajuda o fato de podermos coletar peças e melhorar o nosso arsenal com mais frequência e naturalidade, adicionando estatísticas como dano, cadência, objetividade do ataque e coisas do tipo. A movimentação, da mesma forma, é bastante natural e instintiva, e fica entre algo no meio do batmóvel de Arkham Knight e os tanques de Destiny 2, guardando obviamente as devidas proporções de escopo de produção.
A pobreza dos espaços a serem visitados, todavia, nunca deixam que realmente aproveitemos o ambiente de verdade. Cavernas e outras instalações são simplesmente risíveis, e toda vez que elas aparecem no mapa, são somente uma parada obrigatória para coletar os mesmos minérios, as mesmas peças, em um leiaute do mais simplório possível: você entra, tem um salão em formato oval, coleta o que tem lá dentro e só, sem surpresas, sem corredores, sem qualquer caminho alternativo, nada. Todas as cavernas, todas as bifurcações, exceto por uma ou outra que aproveita o design das que são feitas para missões primárias, são exatamente iguais.
Não ajuda o fato de que visualmente, o jogo também é, no mínimo, repetitivo. Já seria um desafio gigantesco tentar criar diversidade em um terreno tão árido, quase sem vegetação e composto de rochas e areia, e o trabalho com a geografia do ambiente é até bem feito, com colinas, desfiladeiros e montes rochosos variando a paisagem. A inclusão de outros espaços cênicos, como instalações industriais e outras construções também traz um respiro, mas infelizmente não conseguem criar qualquer tipo de vinculação com o lugar. O que deveria ser o leito de um rio há muito extinto é um caminho como outro qualquer.
Em certo momento, adentramos um complexo gigantesco, cheio de salas, corredores, portas e passarelas, mas no final, tudo usa a mesma textura metálica padrão, preenchido por caixas enormes e mais caixas maiores ainda. Nada faz sentido, não parece ter sido habitado por pessoas, não tem qualquer sinal de ser factível. O mesmo vale para vilarejos, alguns até bem sujos e poluídos, mas ainda assim nem aparentam ter sido feitos por pessoas, para pessoas estarem ali. Ruínas, corredores, pontes… tudo se encaixa como uma sequência de elementos convencionais colocados aleatoriamente num ponto para dar uma impressão de ser diverso, mas no final, todo o grande mapa de SAND LAND é um amontoado de nada com coisa alguma.
Já os personagens, estes sim ganham pontos pela fidelidade com o material original, modelados e construídos com um belo cel-shading de traços grosseiramente desenhados para se aproximar de ilustrações feitas à mão, algo que vai para além da meia dúzia de expressões típicas de produções similares. Ainda é um conglomerado de caras e bocas, que pouco trabalham com a sincronia labial na versão em inglês, ainda que o japonês não seja lá muito melhor nesse sentido, mas ao menos há um pouco mais de personalidade inclusive em personagens secundários. A localização em legendas para o nosso português está, aliás, muito boa, se apropriando dos mesmos termos e traduções presentes nas páginas amareladas do mangá. Mesmo cheio de caricaturas e algumas piadinhas no pior estilo de vergonha alheia, não há o que se reclamar do texto.
A trilha musical é outro aspecto difícil de definir. As canções mais agitadas para confrontos e explorações abertas são convincentes, mas há um ou outro momento onde entra uma melodia mais intimista que soa estranha ao ambiente. Se as vozes são canastronas e os efeitos sonoros são, digamos, econômicos, a música poderia fazer um papel mais preponderante mas, ao invés disso, só evidencia uma certa falta de inspiração e compreensão do que está, de fato, sendo tratado ali. SAND LAND é um tanto quanto repetitivo em seu conjunto sonoro, salvando-se talvez a sonoplastia retrofuturista veicular que faz jus ao que se espera das onomatopeias que transbordam das páginas ilustradas do material base.
Em resumo, parece repetitivo fazer a comparação entre diferentes mídias quase que ao longo da análise toda, e não sou muito apegado a um tipo de validação de uma adaptação usando a fidelidade como parâmetro. Em SAND LAND, porém, fica evidente que as melhores qualidades do jogo são herdadas, enquanto que as soluções intrínsecas da nova mídia esvaziam a jornada para atender a demandas pretensamente dadas pelo gênero. Você realmente quer conhecer aqueles personagens, se pergunta porque alguns deles deixam a tela depois de uma rápida apresentação e gostaria de saber como era o mundo antes da tirania trazer o sofrimento para o povo. Mas basta dar meia dúzia de passos para deixar a curiosidade de lado.
Quando o foco está na profundidade de uma história sobre a amizade improvável entre seres de dois mundos distintos em uma história sofisticada que também passa por problemas mais complexos como o uso responsável de recursos naturais, disputa de classes e preconceito, tudo flui bem como a água límpida que eles tanto buscam. Mas em todo o resto, ao tentar ser um jogo, quando nos coloca para estapear uma cobra aleatória dentro de um templo ou quando nos convida para um desfiladeiro para não achar outra coisa que não o mesmo plano de fundo inócuo, tudo parece areia e desce rasgando a garganta.
As soluções de ação, situações narrativas de passagem em cenas de corte e a caracterização de personagens bastante complexos também agregam algum valor ao game, principalmente quando servem à progressão real da trama. Mas daquilo que imagina para os elementos interativos, nada vai para além do medíocre, exceto um modelo de customização dos veículos que realmente me deixou interessado em ver o que mais daria pra ser feito. Tanto combate corpo-a-corpo quanto exploração, dois pilares de um RPG leve e aventuresco como esse, ficam muito aquém do que há de mais trivial no mercado, o que só piora com uma caracterização de mundo enfadonha e desinteressante, que até ganha fôlego no terço final, mas que nunca chega a empolgar de verdade.
Mesmo quando traz elementos novos e tenta ir além do que já vimos antes, exatamente para buscar diversificar aquilo que já não conseguiu tornar atrativo lá no início, o jogo acaba patinando. A Forest Land tenta dar um respiro ao universo do qual já cansamos, mas uma missão de resgate só vale a pena mesmo para quem está realmente disposto e encarar uma série de inimigos bobos e pouco inteligentes. As caçadas a personalidades procuradas no melhor estilo bounty hunter traz uma boa dose de desafio e recompensa e cria uma distração valiosa. Ao menos, com todo um arsenal interessante disponível, o qual é construído à duras penas por horas a fio, a coisa pode ficar irresponsavelmente mais divertida. Ponto positivo para transportes que lembram algumas máquinas de Tatooine, em Star Wars IV, e o robô gigante que rouba a cena sempre que tomamos posse dele.
SAND LAND não deixa de ser uma opção com suas qualidades, sobretudo para os fãs do legado de Akira Toriyama que tiverem paciência para aguentar o primeira metade modorrenta da jornada. Partindo de um ponto de vista otimista e pouco exigente, há níveis de diversão bastante autênticos em partir de um ponto de quase ostracismo desses personagens para um desfecho redentor e, em certa dose, emocionante. É importante entender também que mesmo com tamanha responsabilidade de adaptar uma marca importante, é um jogo modesto, cheio de limitações e que provavelmente não teve tanto tempo de desenvolvimento quanto os maiores expoentes do segmento. Ainda assim, para quem decidir se aventurar por estas terras estéreis, é importante moderar as expectativas e se conformar com uma aventura que vale muito mais pelo que está contando, e menos pela forma como o faz.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Bandai Namco.
Veredito
SAND LAND tem seus méritos ao respeitar e ampliar a obra original do lendário Akira Toriyama. Mas no que acerta em aspectos de narrativa e design, falha em sistemas de combate e exploração: tão genéricos e desinteressantes quanto um deserto cheio de areia e… mais areia.
SAND LAND has its merits in respecting and expanding the original work of the legendary Akira Toriyama. But what it gets right in terms of narrative and design, it fails in combat and exploration systems: , which are as generic and uninteresting as a desert full of sand and… more sand.
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