Loretta – Review

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Gosto de jogos esquisitos e não é a primeira fez que confesso isso por aqui. Mais ainda quando é aquela produção que passou despercebida por mim por todo o tempo antes do seu lançamento e do qual eu só ouço falar quando chega o momento de fazer a análise. Sabe aquela sensação cada vez mais rara de assistir a um filme do qual você nunca ouviu falar, muito menos viu trailer ou material de divulgação, experiência que era mais comum quando alugávamos só porque a capa nos chamou a atenção? Sabe quando você ia jogar algo do Master System e nem a referência da capa havia porque o rótulo era só o título do jogo? Pois é, eu tenho um certo prazer culpado em coisas assim de vez em quando.

Loretta não é exatamente um jogo desconhecido, já que sua versão para PC tem mais de um ano desde o lançamento, mas não tenho receio nenhum em dizer que eu nunca tinha ouvido falar sobre ele, e mesmo o trailer me dizia muito pouco o que esperar. E de fato é um tanto quanto complicado tentar definir o jogo para além de uma proposta narrativa fortemente inspirada em thrillers policiais com alguns tons noir, mas que trazem um elemento de modernidade cafona típico das melhores séries e dos maiores filmes do gênero, como a excelente True Detective (HBO, Max) ou grande parte da cinematografia de Alfred Hitchcock.

Loretta

Mas tenhamos calma, porque é muito mais – ou muito menos, talvez – que isso. Ambientado no interior norte-americano, Loretta narra a história de uma dona de casa, esta que empresta o nome para o título do jogo, cujo marido é dado como desaparecido. Os primeiros minutos da trama (que dura algo em torno de três horas, talvez menos) já declamam objetivamente o que aconteceu com ele, e mesmo sendo parte do plot central da história, prefiro não dizer aqui e deixar a revelação para quem for jogar. Contudo, se você está curioso ou já desconfia do que pode ter acontecido, o vídeo que abre esta análise e trata da primeira meia hora do jogo conta com essa informação. Confere lá.

De qualquer forma, o que interessa mesmo no jogo é o que acontece depois disso, em uma narrativa não-linear centrada na nossa personagem principal e na relação dela com o que lhe restou. Seu estado emocional e psicológico, por vezes, transborda para a tela em uma mistura de realidade com as metáforas perturbadoras de uma mente claramente em conflito, e nos vemos diante um processo de degradação e decadência do qual somos mais do que testemunhas, somos cúmplices. A cada novo capítulo, importa muito pouco o que aconteceu e muito mais o que vem em decorrência disso, e fica difícil saber se o encanamento barulhento está mesmo danificado, ou se as pessoas que encontramos são reais e, quando são, se são o que presenciamos. Mesmo sem uma narração propriamente dita, ainda estamos tateando uma perspectiva não confiável.

Loretta

O maior trunfo desta história está em nos manter atentos e engajados a partir da maturidade com a qual os temas abordados são tratados. Na maioria do tempo, estaremos andando pela casa da família, com raros momentos se passando em outros espaços, com um hotel esquisito, um prédio infernal ou a casa de uma distinta senhora que talvez não seja exatamente o melhor exemplo de ética, moral e bons costumes. Mas essa exploração em um espaço tão diminuto em duas dimensões se intercala com puzzles ora óbvios demais, ora sem muito sentido prático, mas que contribuem para a construção do suspense crescente, que transita entre a paranoia e o surrealismo. Tudo isso moldado pelas escolhas rizomáticas tomadas pelo jogador que podem trazer resultados inesperados.

Dizer que não é impossível prever o que acontece a partir de nossas decisões é um certo exagero, confesso, porque há indicadores pouco sutis em várias das opções que nos são apresentadas. Por exemplo, quando um investigador nos visita na primeira cena do game, ele nos pede um copo de água, e uma das possibilidades é interagirmos com um pacote de veneno no armário da cozinha enquanto estamos servindo-o. Essa possibilidade em específico fica em vermelho, assim como outras decisões ao longo da campanha, indicando uma bifurcação clara no que acontecerá a seguir. Se você conhece o óbvio simbolismo da cor, sabe o que isso significa, só não sabe quais serão as consequências a seguir.

Loretta

O visual em pixel art, em um primeiro momento, poderia ser questionado enquanto escolha estética para algo tão carregado dramaticamente, limitando a exploração de ambiente e o estabelecimento da seriedade quase claustrofóbica do tema, mas a inquietante falta do rosto das personagens não poderia ser mais acertada ao nos deixar cegos diante suas atitudes e reações. Há uma impessoalidade que incomoda, sobretudo diante um cenário que brinca com o não-verbal de forma muito própria. Você não sabe como Loretta está olhando para a cabeça de alce com quem ela tem algumas conversas interessantes durante toda a jornada, mas certamente preenche essa lacuna de informação com uma imaginação instigada pela história. Melhor ainda é que muito provavelmente você vê a personagem de uma forma muito distinta da minha e de tantas outras pessoas, mesmo fazendo as mesmas escolhas.

Isso não significa que não vemos claramente como as pessoas realmente são, porque há uma série de passagens que não se configuram bem como cut-scenes, mas realmente transições entre momentos-chave da trama, com ilustrações mais próximas e enquadramentos que se assemelham a visual novels mais modernos. Desenhos feitos a mão conferem ainda mais identidade ao projeto, tal como muitas escolhas de enquadramento que valorizam um aspecto quase cinematográfico da obra. Ainda me questiono sobre a forma como me sinto com a maior parte do jogo sendo enquadrado em um widescreen máximo, com poucas cenas que ocupam toda a tela e outras ainda mais restritas, algo que dialoga com a introspecção em diferentes níveis, mas que esconde várias das melhores qualidades gráficas do game, e as faixas horizontais servem muito mais às legendas do que a qualquer outra coisa.

Loretta

Os diálogos, aliás, estão todos centrados na escrita e não na fala por áudio, o que torna tudo ainda mais misterioso. Se por um lado esta escolha pode tornar as passagens conversadas um pouco mais monótonas do que seriam se feitas por voz, há um elemento de mistério que ganha ainda mais contornos sombrios quando não percebemos as intencionalidades em uma fala ou outra. Será que ela está sendo sarcástica? Ou será que está sendo ingênua? Como eu respondo a isso? Toda esta construção da ambientação corrobora com o clima estabelecido, que incomoda, que agride, que inquieta. Sim, o jogo, mesmo curto, pode se tornar arrastado principalmente no terço central, mas é o preço que vale a pena pagar pelo timing certo de um thriller como esse.

Não ter falas em áudio, porém, não elimina o valor intrínseco do som, cuja potência está exatamente em sua pureza. O som abafado do porão contrasta com o tic tac de um relógio de parede que teima em romper o silêncio de uma casa sem vivacidade, e o estampido de um tiro só não ofende mais que o romper metálico de uma foice contra algo… ou alguém. O minimalismo sonoro não pode ser confundido com a ausência do valor narrativo da trilha musical inserida em pontos específicos, ou com o farfalhar das roupas da personagem quando ela caminha ressabiada. Cada detalhe corrobora com a construção de um espaço opressivo, uma casa que se torna, ela mesma, uma personagem quase viva, que divide o protagonismo com a mulher que lá habita.

Loretta

O ritmo da história, ainda que lento, é bastante adequado para aquilo que está sendo contado. O encadeamento de eventos escala de formas muito interessantes, e certas passagens que levam a finais diferentes jamais parecem abruptos, porque a condução é muito bem feita. Sem artifícios ou indicativos explícitos de onde ir ou o que fazer a seguir, nada parece fora de lugar ou demasiadamente complicado. Se faltam dois fusíveis para fazer um dispositivo funcionar, não espere ficar dando voltas e mais voltas até encontrá-los em uma gaveta improvável, porque certamente eles estarão onde você já imagina que deveriam estar. O level design, se econômico, é preciso, porque o foco do jogo está, afinal, não é na exploração da casa, mas sim nos motivos para isso.

Loretta consegue traduzir para os pixels marcados toda a maturidade que o tema pede graças a uma escrita muito bem feita e um roteiro seguro. Não é das histórias mais revolucionárias do nosso meio, mas está longe se resumir a uma sequência de clichês, tudo isso dando bases que sustentarão escolhas significativas por parte do jogador. Se em alguns momentos nos sentimos sobre trilhos, não importando muito como fazemos algo que está escriptado, em outros há uma satisfação de se fazer uma escolha e ela se materializar na tela de fato, o que deveria ser óbvio, mas nem sempre o é. Não se trata de carma, de escolher ser bom ou mal, ser inocente ou culpado de quaisquer que forem os crimes ou imoralidades presenciadas, mas de como tudo se transforma em algo que ajudamos a moldar.

Loretta

Mesmo em dúvidas sobre a forma como alguns puzzles foram incorporados nas passagens entre cenas, e até mesmo no uso de artificialidades banais como jump scares ou personificações um tanto quanto estereotipadas, posso dizer que Loretta me surpreendeu muito não porque eu esperava algo diferente, já que por não saber nada sobre ele, não havia expectativas mensuráveis, mas por trabalhar com as mecânicas do gênero e com o andamento da trama de formas diferentes do que é convencional. Certamente é um jogo destinado a adultos não só pela violência gráfica ou por trabalhar temáticas sensíveis, mas principalmente pela complexidade de um texto que exige do jogador níveis mais sofisticados de compreensão e leitura.

Ainda assim, eu gostaria que o jogo estivesse localizado para o nosso português brasileiro. O não domínio no idioma gringo poderia significar um completo distanciamento de um jogo que é, quase que por completo, pautado pelos seus diálogos. Embora o não-dito também fale muito, ele só funciona quando em conjunto com o texto. Loretta é um jogo que deve passar despercebido por grande parte do público, inclusive aquele nicho para o qual se destina, mas uma vez superada a barreira da língua, é uma das experiências mais únicas nos últimos tempos, praticamente exigindo que voltemos a pontos específicos da jornada (algo facilitado pela seleção de capítulos já superados no menu inicial) para o bom e velho “e o que aconteceria se…”, superando jogos do gênero de maior destaque midiático e certamente maior orçamento. Suas cores, frases impactantes, e principalmente seus personagens sem rosto devem me atormentar por muito tempo.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela DANGEN Entertainment.

Veredito

Loretta é curto, traz puzzles pouco justificáveis e pode ser arrastado para quem não é fã do gênero narrativo. Mas mesmo diante tudo isso, é denso, maduro, visualmente lindo de uma forma pouco convencional e traz uma trama forte, inquietante e perturbadora, como todo bom clássico thriller deveria ser.

80

Loretta

Fabricante: Yakov Butuzoff

Plataforma: PS4 / PS5

Gênero: Adventure

Distribuidora: DANGEN Entertainment

Lançamento: 11/04/2024

Dublado: Não

Legendado: Não

Troféus: Sim (inclusive Platina)

Comprar na

[lightweight-accordion title="Veredict"]

Loretta is short, it has unjustifiable puzzles and can be dragging for those who aren’t fans of the narrative genre. But despite all this, it’s dense, mature, visually beautiful in an unconventional way and has a strong, unsettling and disturbing plot, as every good classic thriller should be.

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Loretta is short, it has unjustifiable puzzles and can be dragging for those who aren’t fans of the narrative genre. But despite all this, it’s dense, mature, visually beautiful in an unconventional way and has a strong, unsettling and disturbing plot, as every good classic thriller should be.

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