O mercado de jogos nunca escondeu as consequências técnicas avassaladoras decorrentes de uma das maiores crises da história da humanidade, certamente a mais impactante do nosso tempo, e até hoje vemos os sequelas daqueles três anos terríveis em jogos que foram adiados ou até cancelados, componentes e outros problemas industriais em hardware e por aí vai. Contudo, as maiores e mais profundas cicatrizes desse evento global ainda são abordadas de forma muito tímida, algo que não é raro em casos assim porque lidar com tragédias humanitárias, sobretudo as que mexeram com a vida das pessoas em todos os seus meandros, é algo difícil e delicado de se retratar mesmo com a permissividade poética das artes, principalmente quando os sentimentos ainda são tão recentes, quando ainda estamos tentando entender o que o mundo se tornou.
Mediterranea Inferno é um projeto encabeçado por Lorenzo Redaelli, do cutuado (ainda que relativamente desconhecido) The Milky Way Prince: The Vampire Star, de 2020, e se coloca a difícil missão de retratar uma sensação pós-COVID pelos olhos de três jovens adultos italianos, em uma trama fundamentalmente sobre amizade e auto-descobrimento, mas principalmente sobre a reconstrução de uma identidade fragmentada em um mundo destroçado por um inimigo invisível, uma ameaça sórdida que corrompeu diretamente a vida e com a saúde de milhões de pessoas, mas que também revirou o imaginário de cada um de nós, os oito bilhões de habitantes deste planetinha. Se ainda estamos anestesiados, talvez seja o momento de começarmos a pensar quem, de fato, nos tornamos.
Em um movimento de reencontro, nossos três protagonistas, Claudio, Andrea e Mida, auto-intitulados I Ragazzi Del Sole (ou Os Garotos do Sol, em tradução livre) são amigos de longa data e muito conectados um ao outro no período de suas adolescências, que decidem se reunir em uma casa de verão isolada da correria das grandes cidades. É a primeira vez que se veem depois de muito tempo distantes uns dos outros e do resto do mundo, algo que fica transparente pela intimidade compartilhada nas pequenas coisas, na forma como eles se conhecem. Logo nas primeiras conversas, suas personalidades intensas emergem diante o conforto de estar junto à pessoas em quem se confia. Mas nem tudo é como era antes, o mundo não é o mesmo, e eles também não. Cada um precisou se virar como podia, e agora a missão é se compreender diante um círculo de confiança que carrega experiência, mágoas escondidas e buscas veladas por se entender diante o outro.
Se o jogo pode ser definido sem muitos sobressaltos como uma visual novel tradicional, essa questão de questionamento dos padrões estalecidos pelos quais nossos protagonistas passam também se reflete no modelo de gameplay, que brinca com as convenções de gênero, tais como escolhas, bifurcações e consequências. Elementos comuns em vivências point-and-click, por exemplo, ajudam a quebrar o ritmo, tornando o game deliciosamente assimétrico, se aproveitando do conceito de devaneio – ou miragem, para ser mais explícito – para também nos tirar quaisquer resquícios de uma zona de conforto controlada.
A trama beira o surrealismo quando o palpável se torna fantástico na figura da Madama, uma personagem misteriosa que oferece um fruto proibido, capaz de levar quem a consome para um mundo misterioso de miragens que prometem aliviar dores e traumas. É aqui onde o sacro e o profano se misturam, se confundem, e onde malícia e sensualidade se fundem aos sentimentos mais ocultos de cada um desses rapazes. O grande trunfo do texto é ser sutil quando precisa, e desavergonhado de si mesmo quando a trama exige, e mais do que uma leitura sistemática de alguém de fora, os dramas pessoais, dos mais superficiais aos mais enraizados, se provam autênticos desta geração e, exatamente por isso, favorecem a conexão por parte de nós, jogadores, mesmo que não partilhamos das mesmas ideias, dos mesmos círculos sociais.
A experiência seria outra, porém, se não fosse magistralmente traduzida em um trabalho artístico ousado e que traz consigo uma experimentação quase sensorial desta Itália escaldante. O uso de vermelhos intensos e da saturação de cores tão quentes quanto o clima que retratam se alia a formas obtusas, linhas limpas e desproporcionais quase expressionistas, que transitam entre a gravidade opressora e um mundo transgressor das amarras realistas. As linhas retas, quando parecem estabelecer o tom, servem só para que as curvas rebuscadas assumam durante os devaneios de outro personagem, e depois vem um ponto de vista vertiginoso e minimalista para nos tirar o chão. Mediterranea Inferno é um amálgama atrevido, quase insolente, que faz de suas referências, das mais rasas às mais sofisticadas, elementos de narrativa emergente e pulsante.
A trilha musical é outro aspecto que consegue transitar muito bem entre influências que dialogam bastante com uma geração nascida nos anos 2000, sem deixar de lado a busca por gatilhos emocionais na transição contínua entre os pulsos imponentes da música eletrônica contemporânea com a transcendência quase minimalista de melodias mais limpas, quase angelicais que podem se transformar, sem qualquer aviso, em impulsos agressivos e claustrofóbicos, dialogando diretamente com a construção de tensão e com a expressão dos sentimentos de nossos personagens principais.
Melhor do que ser transportado para este universo por meio de batidas eletrônicas, texturas e cores quase táteis, é saber que ele está genuinamente conectado com as escolhas que fazemos. Se algumas respostas em escolhas rizomáticas parecem muito mais uma construção de personalidade, outras decisões impactam significativamente na trama. Podemos passar por uma série de situações em uma primeira run que serão totalmente diferentes em uma segunda vez, mediante uma ou duas alternativas diferentes em pontos nem tão claros assim, sobretudo a partir da segunda metade da campanha. Mais do que a sensação de estarmos vendo um filme cuja interação parece ser só a de ficar dando play nas cenas seguintes, aqui tudo parece ser mais grave e, portanto, mais significativo.
A falta de uma localização para o nosso português é o maior ponto de lamento aqui. Sem diálogos falados ou qualquer trabalho de vozes, o texto está disponível em vários idiomas, mas o nosso não está dentre eles, o que é uma pena, porque sem o domínio das nuances de cada fala, as conversas podem parecer muito mais confusas do que pretendem ser. Mesmo que Mediterranea Inferno consiga fugir da ininterrupta verborragia na qual outros tantos jogos do gênero se apoiam, e utilize muito da comunicação não verbal, o texto escrito ainda é fundamental para se aproveitar o jogo de forma autêntica e verdadeira.
Com uma campanha relativamente breve, o jogo implora pelo replay, e recomendo fortemente que seja jogado de várias formas para se compreender o que ele pode proporcionar de fato. Tem lá seus probleminhas técnicos, sobretudo ao se perder na contabilização das escolhas acumuladas em um ou outro momento, mas nada que o afete significativamente, e o fato de ainda ser um visual novel pode afastar alguns perfis de jogadores que esperam formas diferentes de interatividade. Além disso, em um mundo ainda receoso de falar sobre as lacunas sociais mais complexas que a pandemia nos deixou de herança, há aqui vários aspectos corajosos que podem não agradar a todos os públicos igualmente. Mediterranea Inferno é incômodo, agressivo, foge das obviedades e mexe com as certezas e aspirações de como entendemos o que está à nossa volta, tal como uma boa obra de arte deve ser.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Santa Ragione.
Veredito
Mediterranea Inferno desafia as convenções narrativas, sociais e emocionais daquilo que já vimos em visual novels, e acerta ao problematizar conveniências de modo desaforado e incisivo, sem vergonha de dizer, mostrar ou cutucar temas ainda tão sensíveis em um mundo que prefere ignorar suas próprias cicatrizes.
Mediterranea Inferno challenges the narrative, social and emotional conventions of what we’ve already seen in visual novels, and gets it right by problematizing conveniences in a bold and incisive way, without being shy about saying, showing or poking at topics that are still so sensitive in a world that prefers to ignore its own scars.
[/lightweight-accordion]