O corpo é um mecanismo, a máquina é um organismo. É difícil entender conceitualmente a fronteira que os separa. Ambos têm partes, interações, sistemas, funções, fontes e resíduos que formam um todo único. Um corpo? Uma máquina? Talvez a diferença não seja crucial como pensamos.
Essa é uma das grandes questões da ficção científica, certamente. Em Cocoon ela não surge na trama, mas na estética, que, neste caso, definirei como a manifestação sensorial que se comunica com nossas emoções.
Em primeiro lugar, Cocoon evoca o estranhamento com seus mundos alienígenas biomecânicos. Em segundo lugar, a base vem do nosso próprio mundo, mais especificamente de pedaços dele com os quais não somos familiarizados: a natureza dos seres invertebrados. Como eles, sempre estamos no limiar de algo que conhecemos, mas apenas de longe, nunca o suficiente. São os insetos, os moluscos, os artrópodes, os anelídeos, aqueles bichos que, como corpos, provocam repulsa, mas, como máquinas, nos causam fascínio.
Cheios de pernas, carapaças, articulações, tentáculos, bulbos, membranas, asas, olhos, cores, carnes, curvas, fluidos, aneis, poros, casulos, sulcos e orifícios, nós os vemos com suspeita hesitante: serão confiáveis ou ameaças?
Por outro lado, são também cheios de luzes, retas, engrenagens, cabos, placas, conexões, encaixes, retrações e utilidade, qualidades que, em conjunto, vemos com admiração diante de algo funcional, dinâmico, planejado, preciso, simétrico, sistemático e complexo.
Cocoon, que é casulo em inglês, liga os seres aos cenários em que vivem. É até difícil discernir totalmente se o que vemos é vivo ou não — é a hesitação que caracteriza o estranhamento — uma vez que as estruturas parecem grandes corpos harmônicos que contêm e envolvem outros corpos menores.
A arte visual favorece todos esses aspectos com suas texturas simples combinadas à paleta de cores leves, iluminação dinâmica, jogo de sombras eficiente e reflexos cristalinos. Em suma, Cocoon é um jogo muito bonito de ver, com ou sem a hesitação do estranhamento.
Como o tempero da receita, a trilha sonora é toda sintética, dos sons ambientes às músicas profundas de notas solenemente prolongadas, remetendo aos filmes de ficção científica de outrora. Tanto nas partes como no saldo final, a ambientação atinge com sucesso a harmonia pretendida.
E devo ressaltar que a ambientação é muito importante aqui porque é nela que toda a ficção acontece. Assim como Limbo (2010) e Inside (2016), os jogos anteriores em que o diretor Jeppe Carlsen atuou como designer, Cocoon não tem palavras (exceto nos menus). Tudo ocorre em um silêncio verbal que precisa ser compensado com outras formas menos diretas de comunicação.
É aqui que entra a beleza do game design de Cocoon. Ele opta por trilhar a linha tênue que oscila entre a simplicidade da forma e a obscuridade da essência e atinge o resultado louvável de uma gameplay intuitiva e fluida.
Naquele lugar, há esferas que contêm mundos. Seu trabalho é carregá-las, usar as habilidades peculiares que emanam delas e interagir com os diferentes ambientes, sempre avançando rumo ao… isso não importa, ao menos não no começo. O que importa é que você resolverá puzzles para abrir caminho, aparentemente à caça de certas criaturas gigantes que se ocultam no coração das esferas.
Essas criaturas são os chefes que enfrentamos em batalhas que usam da agilidade e mecânicas únicas de puzzles. Ser tocado por um chefe uma vez é o bastante que ele nos arremesse para fora daquele mundo, obrigando-nos a recomeçar o enfrentamento do início.
Chegar a cada um desses chefes será uma tarefa interessante de solucionar puzzles em sequência. Os cenários são amplos, o que ajuda a ocultar que o jogo é bastante linear: um puzzle após o outro, sempre seguindo até chegar ao chefe.
Geralmente os problemas envolvem descobrir uma forma de passar adiante carregando sua esfera. As quatro orbes que contêm mundos têm interações especiais com elementos dos cenários e se tornam parte da solução dos enigmas. Em locais específicos, podemos entrar e sair dos mundos e não demora muito até podermos guardar uma esfera dentro de outra para mover as duas ao mesmo tempo e alternar de mundo para ver como uma esfera pode destrancar caminhos em terras alheias.
Pode até soar complicado ou como algo que induz à tentativa e erro, mas não é nenhum dos dois. Os cenários são planejados em detalhes para sempre trancar o jogador onde ele deveria estar e abrir o caminho que deve ser aberto. Você não sairá por aí a esmo, explorando, se perdendo e se achando. O jogo determina um fluxo e você segue nele às vezes sem perceber.
Certamente encontramos alguns momentos “eureca!” em que a análise da situação nos faz descobrir a solução criativa, mas, no geral, os puzzles de Cocoon não servem para criar enormes barreiras e não demoram a ser solucionados. A satisfação está mais em apreciar a inteligência das ideias que parecem nos guiar precisamente do que em quebrar a cabeça para superar enigmas complexos. O jogo consegue nos levar aonde devemos estar sem, com isso, parecer simplório e fácil demais.
Assim como acontece com a estética dos organismos-mecanismos, é bonito ver o funcionamento deslizante do design de Cocoon. No entanto, existe um limite para o quanto essa qualidade consegue sustentar o jogo. Felizmente, a desenvolvedora Geometric Interactive soube respeitar esse limite e criar um jogo curto que saiba aproveitar e organizar aquilo que tem a oferecer ao público.
A verdade é que Cocoon não tem exatamente um enredo, mas sim uma jornada. Somos um andarilho misterioso que deve ter algum propósito obscuro. Enquanto não descobrimos, vamos por aí descobrindo mundo, levando-os nas costas e caçando os chefes que se escondem neles. As motivações, os porquês, os atos que marcam o passo da história, tudo isso é secundário. Até a narrativa ambiental que os jogos silenciosos costumam desenvolver é deixada no mínimo.
A falta de contexto tira um pouco do brilho da estética e do fluxo da gameplay e limita a própria jornada. Afinal, em algum momento não conseguiremos evitar as perguntas básicas: “Quem sou eu? Para onde estou indo? Qual é o meu objetivo?”. Não encontraremos respostas ou pistas concretas ao longo da campanha e a cena final requer interpretação.
Assim, quando a porcentagem já indicava mais de 70% da jornada concluída, o que eu queria era um desenlace que pudesse encaminhar Cocoon ao final. O jogo perderia meu interesse se não tivesse algumas cartas na manga para mostrar que não pretendia meramente repetir o ciclo de gameplay, lançando bons desafios e paradoxos em seus momentos finais.
Para encerrar esta análise, cabe uma explicação extra sobre a porcentagem mencionada. O sistema de salvamento automático é bastante interessante: mais ou menos a cada 2% de progresso, o jogo cria um ponto para carregar o salvamento. Ou seja: podemos retornar diretamente a quase 50 pontos diferentes da história de um jogo de cinco horas, o que facilita muito na hora de tentar completar a única atividade alternativa, que é encontrar e libertar alguns seres espalhados por aí. Sim, isso também envolve troféus..
Ah, fica a dica: há um final secreto, mas ele merece o nome que tem e eu só soube disso ao pesquisar na internet após finalizar a campanha. É um processo bastante críptico e consiste em decodificar informações dos cenários em trechos específicos, seguindo uma lógica totalmente paralela à da restante da gameplay. Por isso, é o tipo de segredo que não se inicia pela curiosidade, é preciso apontar para a existência dele para que os jogadores interessados abram os olhos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Annapurna Interactive.
Veredito
Em Cocoon, a ambientação alienígena de beleza estranha é um trabalho minuciosamente bem-feito e que, em geral, compensa o minimalismo da estrutura narrativa quase inexistente. A jornada é recheada de puzzles que funcionam com a coesão elegante de um organismo vivo, fluindo em uma experiência que, por um lado, é harmoniosa e rica, mas, por outro, é mais simples e contida do que deveria.
In Cocoon, the strangely beautiful alien setting is a meticulously well-done job that, in general, compensates for the minimalism of the almost non-existent narrative structure. The journey is filled with puzzles that work with the elegant cohesion of a living organism, flowing in an experience that, on the one hand, is harmonious and rich, but, on the other, is simpler and more contained than it should be.
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