Ah, a tal nostalgia… malandra e sorrateira, nos pega de jeito se aproveitando da nossa distração inocente. Bastam alguns acordes de uma canção tema para despertar lembranças de um tempo outro. E para nós, que vivemos o alvorecer dessa malfadada rede mundial de computadores como um nobre instrumento de pura perda de tempo, ver alguns miolos animados em uma estética Flash já nos remete a um humor bastante controverso da época onde assistir um vídeo ou qualquer coisa em movimento era uma saga das mais sofisticadas. Happy Tree Friends marcou época há algumas décadas atrás por colocar criaturinhas cheias de fofura em situações grotescas e exageradamente grosseiras, algo que mais tarde se tornou até comum e hoje parece ter perdido um pouco do seu impacto.
Eis que surge o anúncio de The Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition, que nada mais é do que uma remodelagem do jogo original lançado há alguns meses para Nintendo Switch e PC, trazendo em seu elenco os icônicos personagens que eram trucidados a cada novo episódio da web série original. Considerando a estética e a temática do game original, pode-se dizer que muito provavelmente a inspiração se tornou parte da experiência nesse crossover, e tudo parece parte de um projeto que deveria ter nascido assim.
Para quem nunca ouviu falar sobre o game base, este é basicamente um shooter roguelike com visão superior que emula uma versão bastante sanguinolenta de um programa de televisão onde o protagonista precisa atravessar uma série de cenários cheios de armadilhas e inimigos mortais e, para isso, ele precisa simplesmente atirar em tudo aquilo que se mexer até não sobrar mais nada. Uma vez superado o cenário, segue-se adiante até que se vença o chefão ou até que se morra antes disso, ciclo esse que se configura como um episódio do show. Ao todo, são seis capítulos que compõem uma temporada completa, ou em uma linguagem mais familiar aos games, seis fases dentro de cada mundo. Simples, objetivo e direto, sem firulas ou qualquer tentativa vã de incorporar uma narrativa que se leve minimamente a sério. Uma história, aqui, seria mera distração barata.
Para minha surpresa – e, confesso, um certa decepção – que já era esperada desde quando o jogo foi anunciado, há o fato inapelável de The Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition não ser um jogo no estilo twin stick shooter, ou seja, aqueles que permitem que um analógico sirva para movimentação para que o outro seja dedicado a apontar a direção do tiroteio. A mira, nesse caso, é automática, normalmente se direcionando ao inimigo mais próximo, mas com a opção de se alternar o alvo via botões de ombro. Se por um lado facilita as coisas, porque privilegia a precisão quase cirúrgica do ataque, algo que ajuda bastante quando estamos sob chumbo pesado, por outro simplifica demais o combate, nos tirando a autonomia dos movimentos de ataque. Por estar acostumado com um outro sistema, acabei me sentindo um pouco limitado a princípio, mas por ser extremamente fácil de se aprender, tudo começou a fluir rapidamente com algumas horas de prática.
Além do uso de em armamento bastante variado, que vai desde armas de raio, bestas, lança-granadas e laser até bastões de nerf ou entranhas de uma criatura morta, há ainda um prático e necessário movimento de esquiva, que ao ser aprimorado ainda funciona também como uma ação ofensiva; e um item complementar que depende da classe inicial que escolhemos ao adentrar uma run, que pode ser uma bandagem para cura ou uma torreta, por exemplo, mas que pode mudar a partir das benesses conquistas dentro de cada partida. Com as melhorias possíveis de serem adquiridas via patrocinadores, podemos ainda carregar uma segunda arma que se alterna com a principal ao toque de um botão, além de outras pequenas adições que vão incrementando o nosso perfil a cada incursão, algo que será de fácil e óbvio reconhecimento para os fãs do gênero. Entre, avance o máximo possível, acumule pontuação, colete melhorias permanentes, melhore o personagem no hub principal, vença o nível para liberar o próximo e volte de novo para a confusão.
Ao longo da run, outro modelo facilmente reconhecível é o de avanço por trechos bifurcados, cada qual com um prêmio possível. Armas, itens, melhorias, inimigos mais poderosos, loja, e mais adiante suporte e outras categorias. Funciona como o esperado: ao vencer aquela passagem – cuja configuração de leiaute é aleatório, mas rapidamente reconhecemos todos os templates que começam a se repetir – você recebe a bonificação esperada em modo aleatório. A arma conquistada pode ser um trabuco overpower ou outra arma mediana, cada qual que, aliás, tem munição ilimitada, mas com tempos diferentes entre um disparo e outro, aspecto que prontamente será percebido como fator determinante em nossas escolhas preferenciais. A sorte é um elemento importante, e muitas vezes me beneficiei avançando quando claramente não merecia e fracassando quando já estava pronto para seguir adiante, graças a coisas muito boas ou muito ruins ofertadas nesse meio de campo. Faz parte do pacote esperado pelo gênero.
A diversidade de inimigos, aliás, me parecia bastante restritiva a princípio, encontrando os mesmos tipos, alguns deles disfarçados com outras skins mas mantendo comportamentos padronizados, mas o jogo me convenceu, fase a fase, que há sim uma amplitude interessante a ser explorada. Nada que surpreenda verdadeiramente, mas cumpre muito bem aquilo que se espera, considerando a escalada de exigência de um game assim. Muitas vezes, a curva de dificuldade dá alguns saltos nos chefes de fase, e não foram poucas as vezes onde passei intocado por todo o episódio só para ser massacrado em segundos pela chuva de balas do desafio final. Entretanto, o nível de exigência de The Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition é bastante adequado considerando todas estas variáveis das quais falei: automatização do combate, variedade de inimigos e equipamentos, melhorias temporárias e permanentes, e tudo mais. Não é vergonha repetir alguns níveis iniciais para acumular benefícios, e este é um mecanismo válido e esperado.
Com cenários geralmente pouco inventivos esvaziados de sentido que demoram para apresentar alguma variedade conceitual, é na ação despretensiosa onde está o grande mérito da produção. Se sozinha a aventura se torna intensa mas, não raro, cansativa, basta ter aquela parceria local para tudo ficar ainda mais insano e deliciosamente bagunçado. Jogar em modo multiplayer pode não ser lá das coisas mais produtivas por conta da poluição na tela (ainda que ajude nas passagens mais complicadas), mas certamente é o jeito mais divertido de se aproveitar toda essa maluquice, desde que os envolvidos percebam que levar as coisas a sério demais, aqui, é decidir jogar do jeito errado.
Apesar de tudo isso resultar em combates ferozes que abusam da violência cartunesca tão facilmente reconhecível, é a parte gráfica que mais desperta o rápido reconhecimento não do ambiente, mas principalmente de personagens e do estilo de animação. Traços simples, cores sólidas e um bom uso de artes bidimensionais são um verdadeiro deleite para os fãs de longa data da marca. Não há qualquer tentativa de reinvenção estética e tudo é facilmente reconhecível, das expressões de cada personagem ao som nojento do sangue jorrando pela coluna vertebral de um pobre coitado da plateia que sofre, sem querer querendo, com o fogo cruzado. O nome de alguns dos principais equipamentos também trazem boas referências que, para completar a nossa alegria, estão todas bem localizadas para o nosso português brasileiro. O sentimento genuíno é de que tudo está lá como deveria estar.
Ainda assim, é como se não estivesse. Aquela nostalgia traiçoeira da qual falei no início desta análise nos ataca de prontidão, mas se torna ineficiente à medida em que nos afastamos do objeto da paixão e nos aproximamos do jogo como ele realmente é. Basta um pequeno respiro entre uma investida e outra para que sejamos pegos de assalto com a constatação inexorável que, no final das contas, o jogo é muito mais Crackpet Show e muito pouco Happy Tree Friends, o que não deveria ser uma surpresa dado o histórico de ser, evidentemente, uma edição temática, e não um jogo original da tradicional franquia. Se no início tudo parece fazer parte de forma orgânica a ponto de não sabermos diferenciar onde termina um e onde começa o outro, chega o momento onde descobrimos que, de fato, aqueles personagens que tanto amamos atuam nesse jogo da mesma forma que Aloy e Kratos o fazem em Fortnite, ou como Robocop e Rambo aparecem em Mortal Kombat: eles até podem estar bem integrados, mas aquilo não é deles, não lhes pertence de verdade.
Independentemente desta constatação um tanto quanto óbvia, não há nenhum demérito em compreender que esta edição é uma versão temática que celebra a marca que se tornou um verdadeiro ícone do que se tornaria a internet zoeira que conhecemos hoje. Divertido e deliciosamente incorreto, Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition é cheio de referências e gracejos que vão despertar em qualquer jogador veterano uma sensação de familiaridade, e muito oportunamente irá apresentar esses pobres coitados animados para uma geração mais jovem. O game é dinâmico, ágil e muito bem adaptado ao sistema que propõe, mesmo que muitas vezes possa parecer simples demais para os mais exigentes. Se não reinventa a roda e está longe de atrair quem torce o nariz para o modelo conscientemente repetitivo de eternos reinícios do gênero roguelike, ele se mantém honesto em oferecer um mais-do-mesmo funcional que se vale, para quem se permitir uma leve suspensão da descrença, dela mesma, a tal nostalgia.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Ravenage.
Veredito
Se olharmos The Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition como um jogo dedicado aos famosos personagens que marcaram época décadas atrás, certamente ficará devendo muito porque pouco aproveita de suas qualidades para além do visual. Como um shooter roguelike que mistura comédia, fofura e violência gratuita, porém, há aqui muita diversão descompromissada para os fãs do gênero.
If we look at The Crackpet Show: Happy Tree Friends Edition as a game dedicated to the famous characters that made their mark decades ago, it certainly owes a lot because it takes little advantage of its qualities beyond the visuals. As a roguelike shooter that mixes comedy, cuteness and gratuitous violence, however, there is a lot of fun here for fans of the genre.
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