Todo sábado, o PSX Brasil publica uma lista com os lançamentos previstos para a semana seguinte. Todo sábado, eu vasculho essa lista em busca de títulos interessantes que passaram totalmente fora do meu radar. Entre as fileiras de novidades, muitas vezes me deparo com jogos modestos que foram autopublicados primeiro para PC e, posteriormente, entraram em acordo com uma publisher para ajudá-los a chegar aos consoles. Ao encontrar uma obra que fisga minha atenção, o próximo passo é pedir para Ivan conseguir uma cópia para review.
O método acima descreve como cheguei a esta análise de Boxville, um point and click criado pela Triomatica Games, desenvolvedora ucraniana formada por oito pessoas. O gênero é suficiente para descrever como o jogo funciona: no controle de um cursor, a pessoa que joga deve encontrar pontos de interação pelo cenário, obter itens e usá-los a partir do inventário, conhecer NPCs peculiares, deduzir puzzles e participar de mini-games até concluir a narrativa. Simples e eficaz, perfeitamente dentro do esperado.
O que dá identidade própria a Boxville é a ambientação em que a gameplay acontece, construída pela apresentação de diversos elementos.
Primeiro, o contexto. Como o nome do jogo indica, a história se passa em uma cidade de caixas. Todos os habitantes são latas que vivem em diferentes condições artesanais, do esmero dos prédios de cima à precariedade dos níveis mais abaixo. No entanto, ninguém está a salvo de misteriosos tremores que sacodem a cidade e derrubam as coisas até o fundo.
É por isso que a lata protagonista parte em busca de seu cachorro que despencou para os bairros inferiores. De quebra, ela ainda poderá descobrir o motivo para os terremotos que ameaçam a estabilidade urbana e bagunçam a vida das pesso…digo, latas. Encontraremos facetas da humanidade nos tonéis enferrujados na calçada, as latas que procuram a sorte no cassino, um mendigo de muletas e um vendedor suspeito e oportunista, entre outros.
Toda a narrativa em Boxville é feita por imagens. Os diálogos são em forma de história em quadrinhos, sem qualquer forma de texto verbal, o que leva o estúdio a definir sua obra como uma mistura de game com filme de animação. Isso nos leva ao segundo elemento chamativo: o visual desenhado à mão com técnicas que combinam lápis, pastel e aquarela.
A inspiração estética aparece em uma das primeiras áreas do jogo, onde vemos uma adaptação do quadro O Filho do Homem, de René Magritte, grande nome da pintura surrealista do século XX. O estilo artístico de Boxville mantém semelhanças com o pintor belga nas cores sóbrias, a iluminação suave e a lisura das superfícies dotadas de texturização sutil. Em poucas palavras: é sinestesicamente agradável de ver e sentir.
A animação segue a linha tradicional do quadro a quadro em que nada é supérfluo ou fora de lugar, conduzindo sua expressividade suave como se desse vida a um livro ilustrado. Permeando tudo está o design de som delicado e a música de fundo que comunica à pessoa que joga que não há pressa.
O terceiro elemento é o design de puzzles. Como já apontei, a interatividade não adiciona ideias novas ao padrão e se baseia na fórmula de apresentar pequenos problemas cujas soluções se desdobram em efeito cascata até que seja resolvida a questão central de como passar à área seguinte. É o básico.
A maior parte das tarefas é intuitiva e dá a satisfação de resolver questões do senso-comum valendo-se apenas da própria curiosidade e dedução. No entanto, considerando o tal efeito cascata, basta travar em um passo do enigma para comprometer todo o andamento do jogo e, com isso, o ritmo da narrativa.
Por duas vezes eu realmente fiquei sem saber o que fazer e passei a perambular entre cerca de quatro telas, testando interações e itens pela lógica repetitiva da tentativa e erro. Sim, é frustrante ficar trinta minutos tentando as mesmas ações em loop na esperança de acertar a resposta por acaso (problema comum em point and click), especialmente quando o jogo completo dura apenas cerca de três horas.
Boxville é uma obra curta cuja duração dependerá da sua desenvoltura em acompanhar a didática proposta, que, felizmente, quase sempre funciona. Não há muito a fazer uma vez que chegamos ao fim da jornada, mas fica a contemplação da suave experiência artística sobre modestas latinhas que vivem em uma cidade de papelão.
Para esboçar minha reflexão, retorno a Magritte. Talvez seu quadro mais famoso seja “A Traição das Imagens”, aquele do cachimbo com a legenda que diz “isto não é um cachimbo”. O sentido da traição é de que aquilo se trata, na verdade, de uma pintura, uma representação da coisa, não a coisa em si, questionando a maneira como percebemos e interpretamos a realidade.
Pela associação ao pintor, podemos perceber algo semelhante em Boxville: não é uma cidade de caixas nem pessoas de lata, é uma ficção construída em forma de jogo. Os materiais pintados na tela podem parecer papelão e alumínio, mas, em última análise, os significados imediatos que captamos mostram pessoas. As latinhas são humanos em seu frágil habitat social, fortalecido nas relações cotidianas de interdependência. Jogamos com uma lata que deixa sua marca por onde passa, consertando com dedicação e fita adesiva as rupturas da realidade abalada em sua verticalidade ilusória.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Triomatica Games.
Veredito
Modesto, bonito e singelamente humano, Boxville oferece uma aventura point and click que não precisa de palavras para satisfazer pela gameplay de puzzles e pela conexão emocional. A história de uma latinha à procura de seu cachorro desaparecido nos leva a um curto passeio pelo cotidiano de uma cidade artesanal e acerta na ambientação com sua bela arte pintada à mão, mas que pode levar à frustração de eventualmente travar em puzzles e comprometer a fluidez do progresso – um problema comum no gênero.
Modest, beautiful and simply human, Boxville offers a point and click adventure that needs no words to satisfy through its puzzle gameplay and emotional connection. The story of a tin can looking for their missing tin dog takes us on a short walk through the daily life of an artisanal city and hits the spot with its beautiful hand-painted art, even though this path can lead to the frustration of eventually getting stuck in puzzles and thus compromising the fluidity of progress – a common problem in the genre.
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