Sim, ela voltou! A Telltale, que há pouco mais de uma década deslumbrava o mundo ao vencer vários prêmios importantes com a sua visão interativa de The Walking Dead e que, depois disso, não parou mais de criar experiências similares com outras marcas importantes – ela o fez antes de TWD também, mas com menos visibilidade – acabou passando por alguns perrengues bastante significativos, fechou as portas, e agora volta, ainda se adaptando a uma nova realidade. Isso acontece, entretanto, como se ela não tivesse passado por, digamos, um hiato: criando um game episódico baseado em uma franquia bastante querida por um núcleo significativo de fãs, neste caso, The Expanse, a série da Amazon Prime Video que adapta a obra literária de de James S. A. Corey.
Para quem já experimentou qualquer um dos maiores sucessos da desenvolvedora, há uma série de elementos facilmente reconhecíveis. O primeiro e mais óbvio é o modelo de interação que se baseia em diálogos (devidamente localizados para o nosso português brasileiro, como já era esperado) e tomadas de decisão. Se grande parte das escolhas que se faz são puramente contextuais, suficientes para a construção de uma identidade para a nossa personagem e, principalmente, da relação delas com os NPCs, outras são extremamente significativas para o andamento da narrativa, alterando drasticamente o que vem a seguir. Se um tripulante está com a perna presa por um contêiner de suprimentos, a sua decisão de salvar o sujeito inteiro ou de sacrificá-lo para não arriscar a saúde do conjunto será decisiva mais adiante, com direito a um aviso na tela de que fulano vai se lembrar disso.
Outro elemento que remete a uma familiaridade com outros jogos é o estético. Considerando que o motor gráfico parece diferente e mais mais otimizado comparado com aquele tradicional que nos acostumamos, o traço quase caricatural somado a uma colorização que flerta com o cartunesco não nos deixam esquecer que estamos diante um legítimo game da Telltale. Movimentação e fluidez de animação se mostram superiores, principalmente na exploração dos ambientes que estão um pouco mais amplos do que nunca até pela temática da trama. Ainda que possa parecer datado em algumas passagens, sobretudo no modelo de interação e colisão, o game traz belas soluções visuais (à exceção por alguns modelos humanos que beiram o medonho quando vistos mais de perto) que mesmo reservando uma identidade própria, não deixa de criar uma relação conceitual com o material visto no seriado televisivo. Um belo equilíbrio, que se mantém pela ambientação sonora, uso comedido do tema musical marcante e por efeitos que despertam um sorriso de lado em todo fã de ficção científica.
Não dá para esquecer da estrutura de gameplay que, para além dos diálogos com múltiplas opções de resposta, ainda se preocupa com outras ações, como o combate via os famigerados quick time events (ou QTE para os íntimos) que aqui, por enquanto, oferecem uma janela de tempo bastante generosa, coleta de recursos opcionais, e outras inserções que estão ainda muito aquém de uma revolução no gênero. Sim, caminhar por corredores e flutuar com a ajuda de dispositivos avançados tecnologicamente é surpreendentemente divertido, brincar com o centro de gravidade variável é um dos melhores acertos típicos de aventuras espaciais, já que oferece uma verticalidade promissora, mas já vimos a empresa arriscar um pouco mais que isso em produções como Batman e Marvel’s Guardians of the Galaxy. É compreensível que nesta retomada, os responsáveis estejam jogando no seguro e apostando naquilo que os tornou notáveis, mas pode ser pouco para atrair um novo público, se for essa a expectativa.
Com somente o primeiro episódio disponível – a promessa, segundo o aviso dentro do próprio jogo e reforçado no cronograma disponível na PSN, é manter uma frequência quinzenal sólida e mais ágil do que em outros tempos – é possível notar que as características que se colocam quase como uma assinatura da desenvolvedora estão, felizmente, intactas. A qualidade do texto é particularmente agradável, a densidade do desenvolvimento de tantas personagens faz jus ao material fonte e a ambientação acerta em cheio ao trazer de volta uma tensão pacífica, por assim dizer, tão presente no seriado. Se é verdade que já sabemos o fim da protagonista da história, Camina Drummer, ao final do quinto episódio, uma vez que os eventos do jogo antecedem a série e lembramos onde a personagem interpretada por Cara Gee (que reprisa seu papel aqui no game) estará no futuro, todos os demais tripulantes da Artemis, que parece ser a principal nave onde os eventos se passarão, estão com os destinos atrelados às decisões nem sempre óbvias que deveremos tomar.
No tempo do jogo, acompanhamos uma nave de catadores, que mantém a tradição clássica de ter em seus corredores um grupo de desajustados peculiares, e a heroína, ainda sob ordens de um capitão, se depara com um desastre violento e misterioso, que a conduz por um jogo de poder que resulta em sua ascensão ao posto mais alto e, agora, diante eventos que vão mexer com suas convicções sobre a verdade. O grande trunfo aqui é a coesão transmidiática que o projeto propõe, narrando um fragmento de história ainda desconhecido do público que deve dar sustentação e, quem sabe, possibilitar novos olhares sobre a personalidade de Drummer quando ela estiver ao lado de Fred Johnson em eventos vindouros. Particularmente, quando vi o seriado pela primeira vez, eu dava pouca atenção para ela e, de repente, seu papel no conjunto das coisas se tornou maior e mais interessante do que o imaginado. Ver de onde surgiu isso tudo é como revisitar um velho amigo para saber segredos ainda ocultos de seu passado.
Ainda que eu tenha minhas expectativas quebradas com lançamentos episódicos espaçados temporalmente, confesso que o modelo é tão eficiente aqui quanto o é na TV. Com uma campanha que deve durar, se mantida a média do primeiro capítulo, entre 5 e 6 horas, este seria um jogo a se devorar em um final de semana, em duas ou três sessões generosas, o que poderia torná-la facilmente esquecida se aproveitada na íntegra de uma só vez. Contudo, nesse formato, é muito sedutora a possibilidade de se jogar cada trecho ao menos duas vezes para se descobrir o que há por trás de cada decisão tomada. Eu mesmo me aventurei quatro vezes nesse início só para poder assumir novas posturas diante as bifurcações em um clássico movimento de “e se…”.
Tudo isso é ainda mais instigante pela chance de criar uma série de saves distintos independentes, que acabam se tornando um conjunto de linhas temporais diversificadas. Como é tradição da Telltale, não é possível criar pontos de salvamento manuais e âncoras de retorno, então não dá para, por exemplo, seguir por um caminho e retornar a um momento anterior se não gostar das consequências. Se decidiu matar alguém, o resultado será permanente ao menos nesta versão da campanha e para refazer a escolha, é preciso começar de novo. Eu manterei a minha decisão de seguir com as minhas opções centrais na run principal sem me deixar seduzir pelas linhas alternativas, mas com 15 dias entre uma passagem e outra, poderei levar as quatro campanhas em paralelo. Certamente, se o jogo estivesse completo desde já, minha experiência seria outra, a de terminar tudo antes de começar uma segunda jornada. Como sempre, a forma importa.
Com ainda 80% do game a chegar, não é possível dizer se o desenvolvimento, muito menos se a conclusão estarão a altura daquilo que se viveu na série. Dito isso, a introdução é bastante promissora, criando uma base robusta que, sem didatismos ou explicações mais expositivas, consegue dizer muito com tão pouco tempo. Dar uma passeada pelas instalações da Artemis trouxe até mesmo uma sensação dos tempos áureos de Mass Effect, e a nave tem todo o potencial de ser uma figura tão importante quanto é a Rocinante. Conversas paralelas e missões secundárias se mostram responsáveis por aprofundar algumas relações e por incorporar mais densidade a universo de The Expanse, e mal posso esperar para ver o que vem pela frente. Se a desenvolvedora não se mostra tão disposta a inovar, que bom que ela faz bem feito aquilo que ajudou a definir ao longo dos últimos anos. Seja bem-vinda de volta, Telltale. E seja bem-vinda de volta você também, The Expanse. Já estava com saudades das duas.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Telltale Games.
Veredito
The Expanse: A Telltale Series traz de volta todas as características que já vimos antes nos jogos da Telltale, tanto as boas quanto as questionáveis. O texto transmidiático é ótimo, e as bifurcações rizomáticas parecem promissoras, mas sistemas de combate e exploração se mantêm rasos e pouco atraentes. Para fãs do gênero e/ou da franquia, um deleite. Para os demais, nem tanto.
The Expanse: A Telltale Series brings back all the features we’ve seen before in Telltale games, both the good and the questionable. The transmedia text is great, and the rhizomatic bifurcations look promising, but combat and exploration systems remain shallow and unappealing. For fans of the genre and/or the franchise, a treat. For others, not so much.
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