Há cerca de três anos atrás, estava aqui debatendo comigo mesmo as questões que definem um jogo e quais delas seriam questionáveis dentro de um FMV (ou full motion video) live action. Naquela época, estava falando de The Complex, uma produção anterior daquela que se tornaria uma das referências do gênero, a Wales Interactive. Agora, estas questões voltam à tona por oportunidade da nova produção do estúdio, Mia and the Dragon Princess, cuja estrutura narrativa rizomática se mantém quase que inalterada em relação a outras experiências semelhantes: há uma bifurcação interativa cuja escolha do jogador muda, em maior ou menor grau, os rumos da trama.
Em Mia and the Dragon Princess, acompanhamos uma história um tanto quanto estapafúrdia pelos olhos da protagonista que dá nome ao título, uma garçonete que vê sua vida comum se tornar uma bagunça surreal quando encontra uma mulher escondida atrás de uma lata de lixo que não fala seu idioma e que, por algum motivo, está fugindo das autoridades. Com uma animação introdutória, nós, jogadores, sabemos que aquela pessoa é na verdade uma lendária corsária, Marshanda, advinda de um passado distante que, ao despertar no presente, não faz a mínima ideia do que está acontecendo, de como veio parar aqui, e tem como única dica a direção para qual aponta a estranha bússola em seu braço. Ambas, portanto, sem qualquer informação mais palpável sobre o que está acontecendo, acabam em meio a uma confusão (no melhor sentido Sessão da Tarde) com direito a conspirações, uma gangue criminosa, mistérios absurdos e, porque não, um bar.
Enquanto o estilo artístico da animação introdutória é até interessante, lembrando tirinhas e histórias em quadrinhos realistas da segunda metade do século XX, toda a construção estética do live action – que é de fato a base do game – segue um padrão já conhecido de produções do tipo, com soluções bastante simplificadas, poucos cenários e, na maioria do tempo, ambientes fechados em estúdio controlado. Não a toa, quase toda a aventura principal se dá dentro do tal bar onde Mia trabalha. A direção de arte é sofrível, a fotografia aposta nos planos mais fechados quase sempre com câmera na mão, e a atuação é nada menos que canastrona ao extremo. Na verdade, tudo isso é parte do charme de jogos do tipo e mais do que esperado, é quase um mantra a ser seguido.
No lugar daquele tradicional feedback a cada escolha que mais lembram os games da Telltale ou da Supermassive Games onde havia um aviso de “fulano vai se lembrar disso”, temos um modelo onde há elementos que são fortalecidos ou enfraquecidos conforme as decisões que tomamos, e mesmo que seja necessário aprender a iconografia para que esses gráficos façam sentido, é um sistema bem dinâmico que, talvez, interfira pouco nas decisões que fazemos, mas nos dão uma dimensão moral de cada dilema diante a situação global e não necessariamente em relação a uma única pessoa. Portanto, como referência é quase inútil, mas como complemento estatístico, uma adição interessante principalmente pra quem já sentia o modelo padrão de causa e consequência um tanto quanto estagnado.
É possível ainda, seja no menu principal, seja durante cada run, acompanhar as trilhas que já seguimos e por quais estamos caminhando. Isso porque esté é, claro, o tipo de experiência feita para ser repetida à exaustão em busca de todos os 10 finais possíveis. É curta, com várias reviravoltas non sense e que nos desafia a encontrar todas as nuances disponíveis, algo que em poucas horas podemos alcançar, e que esse mapa torna ainda mais fácil por ser de fácil identificação dos nós que realmente são significativos e quais são meramente variações mínimas do mesmo trajeto. A vantagem de ser uma aventura completamente desconexa de qualquer sentido de continuidade é que as escolhas são realmente determinantes, sem aquela sensação de que no final, tanto faz. Realmente, aqui uma decisão pode mudar completamente os rumos da história.
Normalmente baseadas em duas opções, as escolhas tem um tempo limite a serem feitas, mas no menu principal é possível ativar aquilo que eles chamam de “Modo Streamer” que simplesmente permite que a escolha seja feita no tempo que o jogador quiser. Na explicação da função, é dito que isso ajuda quem está transmitindo a debater opções com seu público, repercutir o que aconteceu até então, enfim, dialogar sem a pressão do timer. Particularmente, eu mantive as configurações originais para evitar ter tempo demais pra pensar nas escolhas, mas vejo essa opção como um elemento de acessibilidade muito conveniente. Principalmente no período que antecedeu o lançamento quando o jogo estava só em inglês (a atualização Day One acrescentou vários outros idiomas de legendas, inclusive o nosso português), é uma forma mais confortável para se fazer a escolha entendendo o contexto. Vale a pena experimentar dos dois jeitos.
O maior problema, entretanto, é que seja qual o caminho escolhido, a história é ruim. Não pelo texto medíocre ou pelas questões técnicas apontadas anteriormente, mas sim porque há uma premissa evidentemente grandiosa – a de uma pirata que acorda na modernidade trazendo consigo grandes mistérios – e que não cumpre com a expectativa. Em grande parte dos caminhos possíveis, a trama se resolve com uma ação (não vou revelar nada para não estragar quaisquer experiências futuras) que em nada resgata o conceito inicial apresentado na cena que abre o jogo. Minha primeira jogatina (esta que ilustra o início do texto) terminou de uma forma tão abrupta que, confesso, eu achei que tinha pulado alguma coisa apertando o botão errado. Fiz questão de repetir as mesmas escolhas na run seguinte pra ter certeza que era aquilo mesmo. E era.
Soma-se a isso problemas mais graves em relação a montagem dessas cenas picotadas que servem a mais do que um caminho, algo que quase inexistia, por exemplo, em The Complex, que soube amarrar bem cada passagem. No caso do jogo de 2023, em vários momentos há personagens em cena que não foram explicados ou sequer citados nas sequências anteriores, causando um grande estranhamento. “Quem é esse aí mesmo?” ou “porque essa mulher está junto ao grupo” foram perguntas frequentes que me fiz. Jogando várias vezes, claro, descobrimos de onde elas saíram, porque há caminhos onde esse povo todo é relativamente bem apresentado. Mas em termos de amarração de roteiro, há furos absurdos que jamais deveriam restar, mas que em testes acabam passando porque aqueles que testam já conhecem esses personagens.
No que se refere a ação, esta é uma das maiores virtudes do projeto. Se tem algo que funciona é o quebra-pau nas cenas de porrada, já que a tal Princesa Dragão sabe muito bem se virar quando a coisa aperta. E aqui, mais uma vez, aquele bom e velho cinema B de ação dos anos 1990 aparece com todo o seu esplendor, com coreografias exageradas, golpes mirabolantes, dublês que fingem apanhar com afinco e poses que deixariam Van Damme com inveja. Mia and the Dragon Princess não tem nenhuma vergonha em assumir a galhofa nesse aspecto e isso é muito valioso porque deixa qualquer ganância eloquente de lado em favor da mais pura e descompromissada diversão. Então seja qual o caminho escolhido, há a certeza de um bom quebra-quebra aqui e acolá.
De um modo geral, experiências em FMV se mostram uma forma do uso da interatividade muito aquém do potencial da ferramenta, claro, mas que ao mesmo tempo se apropria dela de um jeito muito menos sisudo que a grande maioria das grandes obras recentes. E eu gosto do guilty pleasure de jogar uma produção intencionalmente barata, de fazer as escolhas mais estapafúrdias e de ver no que dá. Mia and the Dragon Princess cumpre alguns desses bons requisitos, mas falha ao entregar histórias coesas, em variar melhor o sistema se escolhas, em amarrar bem a trama e em aproveitar a própria premissa absurda em bem próprio. Parece que o projeto as vezes tem espasmos de consciência do ridículo e segura a mão onde deveria soltar de vez. No final (ou finais), a promessa sempre se provou maior do que a entrega, não porque se esperava algo épico ou coisas do tipo, mas porque a premissa parecia mais interessante do que a resolução, seja qual for o caminho escolhido.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Wales Interactive Ltd.
Veredito
Mia and the Dragon Princess é cafona como deveria ser e traz aquilo que se espera de um bom FMV, com escolhas relevantes, atuações caricatas e muitas consequências inesperadas. No entanto, falha ao oferecer uma interação sem qualquer inventividade, além de problemas sérios de continuidade e, principalmente, por um roteiro cheio de potencialidades que jamais se realiza de fato, independente do final escolhido.
Mia and the Dragon Princess is cheesy as it should be and brings what is expected from a good FMV, with relevant choices, cartoonish performances and many unexpected consequences. However, it fails to offer an interaction without any inventiveness, in addition to serious continuity problems and, mainly, a script full of potential that never actually comes true, regardless of the chosen ending.
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