A ainda jovem história dos jogos eletrônicos é recheada de obras marcantes e inesquecíveis, e cada um de nós tem certamente a sua listinha de relíquias que servem de base para a nossa formação enquanto jogadores apaixonados que somos. Contudo, se formos reduzir esta seleção para os títulos que são praticamente unânimes, principalmente para quem cresceu entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, muito provavelmente serão poucos os que dividirão a primeira prateleira com The Secret of Monkey Island, um dos mais consagrados games da era de ouro da LucasArts e do gênero point-and-click.
Sua continuação, Monkey Island 2: LeChuck’s Revenge, não fica atrás no que corresponde à celebração dos fãs e mesmo o que veio depois, já sem a dupla de criadores originais, continua guardado em um cantinho especial de nossas mentes e corações. Desde então, a franquia sempre foi lembrada com muito mais carinho por nós, público, do que pelas pessoas que detinham seus direitos. Não à toa, o anúncio de uma nova aventura em busca do bendito segredo da Ilha dos Macacos nos deixou tão eufóricos quanto receosos, já que os atuais donos da IP tem tido alguns altos e (muitos) baixos quando se trata de reviver grandes marcas de décadas atrás em continuações tardias.
Felizmente, a Disney e a Devolver Digital reconduziram os capitães certos ao leme desta barca (trocadilho intencional) e Ron Gilbert e Dave Grossman, os criadores da coisa toda, estão de volta em Return to Monkey Island mais de 30 anos depois de suas primeiras aventuras. Restava saber se alguns dos paradigmas que eles mesmos tinham contribuído para estabelecer ainda eram relevantes nos dias atuais. Ainda que a nostalgia nunca tenha nos abandonado, e o relativo sucesso de algumas remasterizações recentes de clássicos daquela geração não me deixa mentir, seria ela suficiente para segurar um típico point-and-click em plena geração Playstation 5? Se me permitem adiantar parte do veredito, a resposta para essa pergunta é um imponente sim.
O retorno, claro, não é simples, e logo de cara o jogo oferece uma sessão especialmente dedicada a nos relembrar de alguns momentos importantes da história até aqui. Nosso pirata favorito Guybrush Threepwood destaca eventos importantes de suas aventuras em embates épicos contra seu arqui-inimigo LeChuck na corrida atrás do tal segredo; relembra também alguns dos mais marcantes companheiros de viagem e até de outras figuras que de uma forma ou de outra cruzaram o seu caminho, sempre mantendo o bom humor e o tom aventuresco que tanto marcou a série. Servindo tanto de lembrete para antigos lobos do mar como de introdução para novos marujos, é uma parte importante da obra que evita ser expositivo e professoral demais para deixar que o jogador decida o que quer ouvir.
De modo geral, este é um jogo que retoma de onde paramos no segundo game, e não se preocupa tanto assim em reintroduzir a trama ou seus personagens dentro da narrativa principal. Ainda assim, se apoia pouco em eventos passados e evita depender deles, se mostrando assim uma potencial ótima porta de entrada para a franquia, mais ou menos como foi para The Wicther III: Wild Hunt para aquele universo do bruxão. Se você já conhece esse mundo, vai reconhecer uma infinidade de referências e se sentir confortável com as relações entre protagonista e NPCs, garantindo profundidade em diálogos e segurança em novas decisões. Porém, se não é tão chegado assim, também não ficará perdido e desconexo, porque tudo é retomado com tranquilidade, levando a história adiante.
Guybrush está, como sempre, obcecado com aquele bendito segredo que jamais desvendara (sim, se você não está familiarizado com o que veio antes, o tal mistério jamais tivera uma solução, e o segundo jogo deixou mais dúvidas do que respostas) e se vê de volta à Ilha Sopapo – uma ótima tradução oficial, aliás, um símbolo do belíssimo trabalho de localização para o nosso português brasileiro – à procura de uma embarcação que lhe permita voltar à tal Ilha dos Macacos e finalmente saciar sua eterna obsessão. O problema é que seu antigo rival teve a mesma ideia e, pior, está bem à frente com um barco prestes a zarpar. A primeira missão de nosso intrépido herói é, assim, encontrar uma forma de vencer uma verdadeira corrida em busca do tesouro, seja ele qual for.
O maior trunfo dos jogos anteriores sempre foi elevar a jornada, e não o destino, ao centro de suas estratégias de engajamento e imersão para com o público, dando importância ao desimportante. Ao longo de mais de três décadas, poucos jogos foram capazes de nos apresentar pequenas missões, fragmentos mínimos de uma aventura, que nos seduzem tanto quanto limpar o cocô de uma galinha fantasma, encontrar uma estratégia publicitária que desvalorize o caráter científico da cura de uma doença ou simplesmente como vencer um desafio de quem come mais peixe para se mostrar digno de se tornar rainha. Quando uma competição de arroto se prova mais importante do que abrir o baú que guarda um lendário segredo, as coisas parecem estar no lugar certo.
Porém, é bom destacar que Return to Monkey Island não se furta em revelar algumas das pontas soltas de anos atrás e no final entrega mais respostas do que eu, sinceramente, esperava. Nem todas elas serão satisfatórias para qualquer pessoa, e algumas decisões são até bem corajosas narrativamente falando, mas o que fica, ao final de uma jornada que dura entre 10 e 12 horas, é a sensação de dever cumprido, um misto entre alívio e uma pontinha de saudades, um desejo enorme de que aquilo não seja o ponto final. Ao inevitável subir dos créditos, tive um misto de emoções que não só resgataram os sentimentos de outrora, mas que mostraram que o jogo, por mais que carregue seu legado, sedimentou seu próprio lugar de direito e não só é digno no nome que carrega como o eleva a um patamar ainda mais alto.
Tudo isso porque preza por um importante equilíbrio entre o tradicional e o novo. Ainda será importante saber lidar com as nuances de cada ambiente, descobrir o que é possível fazer com cada coisa que se encontra pelo caminho, explorar todos os cantos improváveis, porque tudo vale. O design de níveis é soberbo, e seja um muquifo fedorento, seja uma grande floresta, cada detalhe conta. Encontrou um ursinho surrado? Guarde. Tem uma lata vazia jogada no chão? Colete. Achou uma bola de cabelo no ralo do banheiro? Leve com você. Nada aqui é por acaso e quanto mais absurda se mostrar a solução dos incontáveis puzzles, melhor. Mas cuidado, porque ao contrário de alguns grandes jogos da atualidade, Return to Monkey Island não subestima sua inteligência e, ao contrário, vai forçar a sua criatividade ao extremo. Mas isso só se você assim quiser.
Explico melhor: o game é bastante generoso em facilitar a vida do jogador de acordo com as suas expectativas. Primeiro porque logo de cara já pergunta se queremos jogar com mais tranquilidade com a automação de alguns puzzles ou se queremos a experiência completa e, consequentemente, mais desafiadora. Até aí, a escolha comum entre a dificuldade normal e a mais elevada. Mas mesmo decidindo pelo caminho mais tortuoso, estamos munidos desde os primeiros instantes do nosso valioso livro de dicas que, se consultado, oferece uma grande quantidade de pistas, da mais sutil à mais direta, sobre cada atividade.
Você pode consultar, por exemplo, como enganar um papagaio-segurança de museu, e o primeiro nível diz que é difícil prestar atenção em algo enquanto se está comendo. Para alguns, isso já pode ser o suficiente, já que você viu em alguma cozinha uma caixa de farelo e acabou coletando. Obviamente, nada é tão simples assim porque o bicho não aceita qualquer coisa. A segunda dica pode te dizer no que o farelo pode se transformar, a terceira dá uma direção de onde isso pode acontecer, e assim por diante. E se o jogador não consegue ou não quer decifrar estas indiretas, há por fim uma última descrição objetiva do que fazer, onde ir e em qual ordem. Este é obviamente o último recurso a lançar mão e fico contente em dizer que só cheguei a ele para fazer esta análise uma vez, mas vale para quem não quer queimar a cachola e só seguir de forma mais casual.
Este cuidado com a acessibilidade do título é sim um acalento para jogadores atuais que não estão tão acostumados a ficar horas andando por aí para só então descobrir que era só misturar duas coisas que já tinha no inventário desde sempre. Entretanto, como é absolutamente opcional, não estraga a experiência de quem realmente quer sentir o prazer inexplicável de descobrir tudo por conta própria. Se tem algo que me irrita em jogos modernos é estar procurando por uma solução e, do nada, um personagem soltar uma fala que entrega tudo. Aqui, não. Não há mapa no canto da tela te indicando caminho, não há pontos de interesse piscando e mesmo na lista de tarefas não há uma ordem definida daquilo que tem que ser feito antes. O encadeamento de eventos é também uma responsabilidade do jogador, que pode optar por ajuda ou não.
Outra boa experiência que sempre se mostrou um grande desafio é o modelo de movimentação e exploração do ambiente, principalmente quando consideramos esta uma versão para consoles, e não para o mouse + teclado, habitat natural da franquia e do gênero. Caminhar pela Ilha Sopapo e por todos os demais ambientes do jogo é confortável e traz uma fluidez surpreendente, seja em espaços lineares e bidimensionais, seja em ambientes mais amplos e dotados de profundidade de campo. Claro que são poucos os lugares pelos quais precisamos percorrer longos trajetos, e a dinâmica intercala alguns corredores com áreas amplas, sem criar caminhos exageradamente alongados.
O backtracking é parte da vivência e fica longe do exagero entediante, incluindo um sistema simples e funcional de viagem rápida por entre locais de uma mesma região, que por vezes agiliza as coisas, mas como cada ação que realizamos pode mudar o mundo, nem sempre é o jeito mais rápido de se resolver problemas. O caminho entre um ponto e outro pode guardar, por exemplo, uma conversa nova com um NPC já visitado antes que ajuda na resolução do entrave. Revisitar velhos amigos de tempos em tempos pode, portanto, ser uma boa forma de não deixar passar nada, incluindo algumas tarefas complementares, que, de novo, podem não ter importância prática nenhuma, mas que somam a todo o espírito da obra. Afinal, seu amigo continua sendo seu amigo, mas ele não seria a mesma pessoa sem sua escova de dentes perdida, certo?
O maior enrosco, porém, está na interação com objetos e outros pontos de interesse no cenário. Como nem todos estão à altura das mãos de Guybrush, não é tão simples assim interagir com eles só pelo contato direto, pelo sistema de colisão. Para o PC, é quase natural apontar e clicar com o cursor, mas para o controle DualSense, é necessário apelar para a seleção encadeada usando o gatilho R1. Como consequência, as coisas acabam ficando facilitadas porque ao fazer isso o jogador consegue navegar por todos os elementos próximos, incluindo aqueles que não tinha percebido. Em certo momento, por exemplo, é necessário pegar uma bandeira escondida no cenário, e navegando pelos outros objetos acabei passando por ela sem tê-la visto, adiantando a solução desse enigma. Ou seja, eu deveria prestar mais atenção no lugar, mas interagir com outras coisas me tirou essa tarefa. Faz parte da adaptação, porém, e o que sobra é recomendar não se apoiar nisso como forma de escanear cada área porque perde-se parte da descoberta.
Por sua vez, acabei surpreendido e seduzido pelo estilo artístico adotado para a obra. Ao invés de se contentar com um saudosismo barato e manter uma estética pixelada, algo que seria um apelo compreensível dado o valor nostálgico da obra, os desenvolvedores apostaram em gráficos com belas ilustrações cartunescas em alta definição que transbordam carisma em expressões caricatas que funcionam muito bem quando alinhadas ao texto escrachado da produção. Soma-se a isso uma montagem que lembra, de leve, uma animação de colagens, mas que ao mesmo tempo segue uma fluidez de movimento bem confortável. Eu estava em dúvidas quando vi os primeiros materiais de divulgação, mas bastam alguns segundos para que o resultado pareça ser a única forma possível de se fazer o jogo.
Todavia, quem brilha mesmo é o trabalho sonoro, com ótimos temas musicais que estabelecem todo um clima leve e lúdico, e efeitos sonoros capazes não só de garantir uma boa ambiência como, sem querer-querendo, arrancar boas risadas pela imprevisibilidade. Impossível ainda não destacar o trabalho de vozes, algo simplesmente sensacional. Há aqui grandes interpretações que enchem cada personagem de vida e se o protagonista tem o seu merecido destaque, é LeChuck que toma conta de tudo sempre que aparece. Confesso que eu queria sim chegar ao meu objetivo, mas estava torcendo para que ele fizesse o mesmo. Se já era um dos grandes antagonistas dos videogames, aqui ele simplesmente assume um lugar cativo dentre os meus favoritos de todos os tempos.
Se eu tinha algum receio de me frustrar esperando que o jogo trouxesse as mesmas sensações de trinta anos atrás, maior armadilha de obras do tipo, ele foi dirimido em instantes. Este jogo tem o coração no lugar certo, sem se deslumbrar com as modernidades atuais, nem negá-las como se fossem contaminar a franquia. É fácil gostar do jogo simplesmente porque ele funciona como deveria, valorizando as melhores virtudes do gênero sem exagerar no purismo ou nas concessões, unindo um sistema de gameplay seguro, um estilo artístico encantador e uma história que, por baixo de uma camada de simplicidade, guarda um desenvolvimento complexo e deliciosamente sofisticado. Se não reiventa o estilo point-and-click pelo qual nos apaixonamos, Return to Monkey Island o eleva ao seu auge.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Devolver Digital.
Veredito
Return to Monkey Island é incrivelmente equilibrado ao fazer com que o novo e o clássico se unam em favor de uma obra coesa, nostálgica e relevante, que celebra o legado da franquia ao mesmo tempo que a eleva a um novo patamar na indústria atual do entretenimento.
Return to Monkey Island is remarkably balanced in bringing the new and the classic together for a cohesive, nostalgic and relevant work that celebrates the legacy of the franchise while elevating it to a new level in today’s entertainment industry.
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