Alfred Hitchcock – Vertigo – Review

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Não faz muito tempo, comentei por ocasião da análise de Wayward Strand que tinha reservas severas em relação a jogos com foco narrativo tal qual aqueles que fizeram a fama de grandes desenvolveras como a Telltale e a Quantic Dream, e que foi só experimentá-los com mais interesse que meu preconceito se dissipou como neblina em dias de sol. Cá estou eu para falar de Alfred Hitchcock: Vertigo, jogo que traz todo o legado do gênero em sua gênese, ousando dialogar com o estilo de um dos maiores gênios da sétima arte e emprestando de um dos seus maiores clássicos o título. Vertigo (o filme), que no Brasil foi rebatizado como “Um Corpo Que Cai” e em Portugal como “A Mulher Que Viveu Duas Vezes”, nomes que, confesso, acho muito mais criativos que o original mesmo entregando os spoilers mais importantes da obra, é uma verdadeira aula sobre a construção do suspense e do plot twist. A questão é saber se o jogo honra o legado ou se o joga em uma vala comum.

Antes de mais nada, é fundamental pontuar que a trama do game não adapta a do filme em nenhum aspecto mais objetivo, ainda que guarde algumas referências que justificam a escolha. Na história, acompanhamos o mistério sobre um acidente de trânsito que teria vitimado uma criança e sua mãe. O pai, um famoso escritor de romances policiais chamado Ed Miller, sobreviveu, mas não sem demonstrar sinais claros de confusão e de um grande trauma psicológico. O problema é que as autoridades nunca encontraram sinais da existência das duas pessoas que teriam morrido e, pior, começam a desconfiar da sanidade e das intenções de Ed, acamado em estado crítico de saúde graças a um evento debilitante de vertigem. A coisa se complica sobretudo quando encontram indícios do envolvimento dele em outros estranhos acontecimentos na cidade e cabe então a uma psicóloga e a um policial local buscarem a verdade por trás de tudo isso.

Inevitável notar que o estilo do chamado mestre do suspense está presente desde a sinopse da obra, e mesmo que obviamente ele, falecido há mais de 40 anos, não tenha nenhum envolvimento com o game – ele sequer teve a chance de conhecer as particularidades da linguagem dos jogos eletrônicos – há uma autorização oficial no uso de seu nome não só no título da produção, mas principalmente na própria emulação de seu estilo. A receita, se é que isso é possível, está toda presente, e soma uma trilha musical incidental que flerta com o incômodo e a sutileza; diálogos e olhares cheios de segundos (e até terceiros) significados; o jogo de aparências; e aquela sensação de que ninguém está mentindo, mas todo mundo está escondendo verdades inconvenientes. Não há dúvidas de que os responsáveis pelo jogo são fãs da cinematografia do saudoso autor.

Referências e easter eggs não faltam e perpassam toda a carreira de Hitchcock. Da observação do estranho comportamento de pássaros em migração à óbvia silhueta pela cortina do chuveiro; do olhar desconfiado por frestas e janelas até um comportamento obsessivo de personagens perturbados; tudo nos faz lembrar de alguns elementos icônicos que o roteirista e diretor ajudou a consolidar em nossa memória afetiva. A linha tênue entre uma sanidade excêntrica e a absoluta loucura fica ainda mais turva a cada nova descoberta, a cada novo elemento cuidadosamente inserido na trama que nos faz desconfiar de tudo o que achávamos que tínhamos entendido. A Pendulo Studios definitivamente sabia o que queria fazer e torna a construção de um típico thriller o seu maior trunfo, mas não sem escapar de algumas inconsistências.

É fundamental que se saiba que este não é um jogo para todos os públicos, sobretudo para os mais jovens ou pessoas mais sensíveis a temas como suicídio, saúde mental e psicopatia. Infelizmente, nem todos esses assuntos são tratados com um aprofundamento adequado e muitos acabam sendo mostrados de forma um tanto quanto rasa. Enquanto alguns personagens tem suas motivações melhor desenvolvidas, outros caem na armadilha do “é assim porque sim” ou “ele se comporta assim porque tem traumas de infância”, algo que não é ruim por si, mas que pode incomodar quem estiver interessado em uma discussão mais instigante e provocativa sobre tais assuntos, algo que o próprio Hitchcock sabia fazer sem parecer pedante ou intelectualóide demais. Portanto, se estas temáticas lhe forem incômodas, tenha ciência de que o jogo não tem qualquer pretensão em aprofundá-las e as trata como ferramentas de roteiro para o suspense como quaisquer outras.

Dito isso, o game acerta na forma como escolhe desvendar as camadas de sua história, contando-a a partir de eventos do presente e do passado principalmente pelo ponto de vista de três personagens diferentes, cada qual com seus próprios interesses, motivações e segredos, isso sem contar passagens específicas onde assumimos o controles de outros coadjuvantes. Mais do que presenciar aquilo que aconteceu, é uma excelente escolha poder vivenciar tais momentos, explorando pensamentos e intencionalidades. Vários acontecimentos significativos são apresentados por diferentes olhares que faz valer a máxima de que há sempre, no mínimo, três versões de um fato: o ponto de vista de um, o ponto de vista de outro e, diferente das anteriores, a verdade.

O desenvolvimento da história, porém, parece sofrer para justificar o conceito de interação do game e, para tal, sacrifica ritmo e imersão. Por mais contraditório que possa parecer, assumir o controle parece atrapalhar um pouco o agenciamento do jogador, porque nesses pontos Alfred Hitchcock: Vertigo acaba se perdendo no foco daquilo que realmente importa. Isso se estende por praticamente toda a campanha, mas pode ser muito explícito quando, por exemplo, você precisa guardar as compras da sua mãe, item a item, um em cada canto da casa, ou quando tem que recolher quatro ou cinco itens espalhados para fazer uma festinha de aniversário, quando na verdade a atenção deveria estar na reação, nas expressões de cada personagem, na troca de olhares, nas sutilezas das palavras. Estas listas de tarefinhas insignificantes cumprem um papel importante de colocar o jogador no controle da ação explorando o ambiente, mas acabam se tornando um engodo protocolar e, ao se alongar, nos retira daquilo que realmente importa de modo arrastado e sem propósito.

As mecânicas de interação, inclusive, não ajudam e, por si, são das mais básicas e simplórias, mesmo considerando o gênero. Não há, por exemplo, os famigerados quick time events (QTE) e as poucas ações que demandam comandos específicos seriam descartáveis não fosse a necessidade de fazer o jogador manter as mãos no Dualsense para coisas como pressionar para baixo quando for colocar algo na mesa, ou direções opostas quando for bater palmas. Os botões de ação, em si, acabam sendo somente disparadores de play nas poucas vezes que são exigidos e nada contribuem para uma sensação legítima de participação do jogador. Sobra então a exploração de ambientes, esta sim um pouco mais interessante por oferecer uma certa liberdade de movimentação em cenários que, por vezes, são até amplos considerando coisas que já vimos antes.

Outro sistema que não poderia faltar é o modelo de escolhas para diálogo, este que acaba demonstrando alguns altos e baixos. Se por um lado há uma narrativa emergente em respostas que favorecem o tom e a personalidade de cada personagem, há outros que simplesmente nos dá a opção só da ordem das falas, porque no final as faremos de qualquer jeito. Por exemplo, em um interrogatório, tanto faz se vamos perguntar uma coisa ou outra primeiro, porque faremos todas as questões da lista, sem qualquer efeito prático resultante desta escolha. Aliás, a sensação de que não há nada onde possamos influenciar no desenvolvimento da trama é presente o tempo todo, porque não importa o que decidamos dizer ou fazer, o resultado é sempre o mesmo. Este é, infelizmente, o maior pecado de um jogo que se propõe uma narrativa interativa, a de fazer o jogador concluir que ele não importa. Mesmo que seja esta a proposta inicial, a se der uma história linear e sem bifurcações, é frustrante.

Este sentimento retorna inclusive nas passagens mais livres das quais falei, onde é necessário explorar o cenário em busca de itens ou outros recursos. Na maioria deles, há uma ordem certa a se seguir. Por exemplo, na cena da festa de aniversário da qual falei – prometo não entregar spoilers de quem ou pra que – é importante encontrar uma bebida, um bolo e um isqueiro para acender as velinhas, e colocar tudo sobre uma bancada. Você não pode, por exemplo, achar o isqueiro antes, e muito menos ficar em dúvidas sobre como utilizá-lo. O item simplesmente não fica acessível até que você tenha encontrado o bolo com a velinha. Também é impossível tentar fazer o uso indevido de algum objeto para saber se está certo ou não. Eu até sabia que tinha que acender a tal vela, mas queria ver o que aconteceria se eu tentasse usar fogo na bebida alcoólica, mas não, nunca se pode experimentar e todas as ações são automáticas.

Senti falta ainda de qualquer artifício que nos remeta a um efeito de causa e consequência, como por exemplo há nas experiências recentes da Supermassive Games, como Man of Medan ou o excelente Until Dawn. Sabe aquele célebre lembrete na tela de “Fulano vai se lembrar disso” que nos alerta sobre as consequências de, sei lá, responder uma questão simples com gentileza ou grosseria? Não há, ou pelo menos não que seja realmente significativo para a história. Tudo sempre leva a um caminho só e no plano geral das coisas, todas as escolhas são só uma perfumaria, um arremedo do que poderia ser, principalmente considerando o momento atual e a maturidade que o gênero alcançou desde suas origens.

As similaridades com o que já vimos antes, entretanto, não ficam só no modelo de interação, mas também no aspecto audiovisual da obra. Impossível não reconhecer escolhas estéticas que remetam diretamente ao que era comum nos games da Telltale ou nos da franquia Life is Strange, com uma estética cartunesca que abusa do cel shading sem, contudo, querer emular o 2D, mas que valoriza traços exagerados que ficam entre o realismo, sobretudo de ambientes, e o desenho animado. É uma escolha inesperada, mas bastante compreensível, já que resulta em uma valorização da expressividade dos personagens sem descambar para a galhofa involuntária, enquanto consegue nos estabelecer cada personagem de um modo reconhecível, que inevitavelmente acaba caindo na caracterização arquetípica que é, para o bem e para o mal, um aspecto comum dos grandes suspenses.

A trilha musical é um outro grande acerto do game, mantendo um tema angustiante presente o tempo todo, que ganha destaque em cenas mais impactantes. O mesmo pode ser dito do trabalho de vozes, tão importante para o formato, e que aqui funciona bem ao propósito. Há sim aquele tom mais exagerado e canastrão tão presente em thrillers das décadas de 1950 e 1960 do cinema de Hitchcock, mas não poderia ser de outra forma e diálogos mais naturalistas certamente destoariam daquilo que se pretende. Em conjunto, tanto a caracterização física quanto a interpretação trabalham juntos na construção de uma ambientação inquietamente, expressiva e quase caricata. Completa o conjunto do suspense o bom uso da iluminação, que foge dos tons mais sombrios, que escapa do clichê de colocar uma chuva torrencial onipresente, levando toda a narrativa para a luz, resultando em um contraste entre a tranquilidade de uma típica cidade pacata e a tensão de uma desgraça que afeta a todos a quem toca.

Tecnicamente, porém, a execução tem sua parcela de falhas, com texturas inconstantes que não se beneficiam da liberdade de movimentação de câmera, modelos cheios de pequenos detalhes de colisão, como tecidos entrando em cabelos, paredes invisíveis e uma sensação de que todo mundo anda patinando, e outras coisas que evidenciam um investimento de produção modesto. Impossível não citar meu estranhamento com a quantidade e com o tempo de carregamento do jogo, considerando que não há cenários enormes ou nada que pareça muito pesado e mesmo assim o jogo se arrasta para carregar mais do que qualquer outro jogo nativo do Playstation 5 que eu tenha experimentado esse ano. Falando na plataforma, aliás, eu não esperava algo muito substancial em termos de feedback tátil, e o jogo se limita mesmo a vibrar o controle quando, por exemplo, toca o celular do protagonista e coisas assim. Não espere muito, e tudo será como o esperado.

O que mais incomoda, porém, é o problema de sincronia labial, com muitas falas completamente desconexas da boca dos personagens, por vezes até em tempos diferentes, algo que se nota do começo ao fim do jogo, e que certamente será um trabalho a se fazer em futuras (e necessárias) atualizações do game. Tentei experimentar outras opções de áudio para além do inglês padrão e testar se foi a dublagem para a versão norte-americana que teve problemas, mas não vi melhoras nesse sentido. Nada que inviabilize o jogo, é verdade, mas que acaba se tornando um ruído no envolvimento do jogador.

Mais do que em outros gêneros, o que mais faz falta aqui para o público brasileiro é a localização ao menos das legendas para o nosso português. O texto não é lá muito complexo, poucas são as escolhas que tem um tempo determinado a serem feitas, e mesmo com um inglês (ou francês, italiano, alemão, russo e espanhol) de leitura mediano é possível entender o jogo com uma certa tranquilidade, mas mesmo assim, considerando todas as nuances de uma investigação, da mudança de pontos de vista, das versões de um mesmo acontecimento, a barreira do idioma pode ser um impeditivo para alguns jogadores que não forem minimamente familiarizados com as opções disponíveis, já que sem entender ou se envolver com a história, não sobra quase nada.

Como um todo, Alfred Hitchcock: Vertigo se sai muito melhor como narrativa do que como uma experiência interativa, e parece que o fato de termos que controlar os personagens acaba atrapalhando-os. A história é competente, a vejo tranquilamente como uma bela homenagem a um dos mais importantes e influentes autores da história do cinema que se beneficia de alguns recursos inerentes aos jogos, inclusive ganhando mais tempo para desenvolver personagens em uma campanha que varia entre 10 e 11 horas, como a mudança de ponto de vista, a exploração de cenários e seus pequenos-grandes detalhes, mas que acaba tropeçando ao apresentar um modelo de interação burocrático e sem impacto, além de escolhas pouco (ou nada) influentes que, atuando contra a obra, acabam diluindo o mistério e a tensão para além do esperado.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Microids.

Veredito

Alfred Hitchcock: Vertigo é uma bela homenagem ao estilo que eternizou um dos maiores cineastas de todos os tempos, oferecendo uma trama de suspense interessante e pouco comum em jogos. Contudo, mesmo cheio de boas intenções, peca ao oferecer mecânicas extremamente simplórias, que acabam truncando a imersão ao invés de favorecê-la.

60

Alfred Hitchcock - Vertigo

Fabricante: Pendulo Studios

Plataforma: PS4 / PS5

Gênero: Adventure Narrativo

Distribuidora: Microids

Lançamento: 04/10/2022

Dublado: Não

Legendado: Não

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Alfred Hitchcock: Vertigo is a beautiful tribute to the style that immortalized one of the greatest filmmakers of all time, offering an interesting and unusual suspense plot in games. However, even full of good intentions, it fails by offering extremely simple mechanics, which end up hindering immersion instead of favoring it.

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Alfred Hitchcock: Vertigo is a beautiful tribute to the style that immortalized one of the greatest filmmakers of all time, offering an interesting and unusual suspense plot in games. However, even full of good intentions, it fails by offering extremely simple mechanics, which end up hindering immersion instead of favoring it.

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