Às vezes, timing importa. Não é sempre, nem para todos os casos, nem para todas as pessoas, mas é inegável que o contexto é capaz de moldar as nossas percepções sobre como um produto, um conteúdo, um texto (seja ele escrito, seja em outra linguagem) nos impacta, nos atinge, nos emociona. Little Orpheus é um desses casos onde algo externo e longe de qualquer aspecto de controle acaba transformando a obra. Curiosamente, com um lançamento fragmentado ao longo de mais de dois anos por diferentes plataformas, isso fica ainda mais pulsante. Mas vamos com calma, explico-me melhor.
Little Orpheus, jogo independente produzido pela The Chinese Room, foi lançado originalmente para dispositivos móveis, mais especificamente iOS, em 2020, e chega agora aos consoles em uma versão que se propõe otimizada para telas maiores. Até aí, nada de muito diferente de muitos outros jogos. O grande problema é que o objeto que dá nome ao jogo é também seu McGuffin (aquele artifício narrativo clássico que serve para mover a trama, tal como o Um Anel na obra de Tolkien ou o Santo Graal em Indiana Jones e a Última Cruzada), basicamente uma bomba atômica perdida pelo exército russo em pleno período da Guerra Fria. Não preciso citar o quão sensível é o tema em pleno 2022, ainda que a grande comoção pública em torno das tensões políticas e dos conflitos envolvendo aquele canto do mundo parece ter passado.
Na trama, vivida em formato de retrospectiva pelo relato de um narrador não-confiável, conhecemos um cosmonauta chamado Ivan Ivanovich que, há três anos, recebeu a missão de procurar e resgatar o tal artefato perdido em uma viagem ao centro da Terra. Sobrevivente da expedição, mas malsucedido em sua tarefa, ele agora precisa explicar porque sumiu por tanto tempo, por onde andou e o que aconteceu com o tal Little Orpheus. O segundo ponto questionável da escolha pela abordagem, tão fantástica como bem-humorada, é o modo caricatural adotado, que se apropria de todos os estereótipos históricos atribuídos ao povo soviético, incluindo aquele sotaque carregado dos filmes da era de ouro do Supercine, mas com o tratamento de um seriado tipicamente norte-americano de décadas atrás. Porém, o que parecia ser feito como uma mistura entre a homenagem e a sátira acaba se revelando só meio bobo e datado.
Tudo isso serve como um grande pano de fundo para uma jornada bastante surpreendente pelo desconhecido centro do nosso planeta no melhor estilo Julio Verne, com o conceito da Terra Oca sendo levado ao extremo. Ao longo da aventura, basicamente um plataformer stealth onde não há um conflito propriamente dito a se desenvolver, nosso improvável herói atravessará florestas tropicais povoadas por criaturas jurássicas, grandes oceanos, cidades perdidas; encontrará povos estranhos e chegará aos confins de lugares que não vou detalhar para não entregar eventuais spoilers para os interessados. São oito fases no total, cada qual ambientada em um bioma diferente, e mais um epílogo que acaba entregando a mecânica mais interessante e desafiadora de todo o jogo, o que não chega a ser uma missão muito complicada.
Isso porque Little Orpheus é um jogo cuja dinâmica de interação é bastante limitada e um tanto quanto frustrante, devo acrescentar. É um jogo cujo objetivo é basicamente chegar do ponto A ao ponto B em linha reta, em uma perspectiva lateral que até tem seus pontos interessantes e situações mais tensas, mas que na maioria do tempo é um caminhar tedioso e pouco desafiador. É necessário, em alguns momentos, se esgueirar para não ser visto ou detectado, e em outros vale a regra do correr como se não houvesse um amanhã. Para além disso, há alguns quebra-cabeças que, sinceramente, são semelhantes a qualquer tutorial de outros jogos do gênero, e em momento algum se mostram minimamente condizentes com o que se espera de algo do tipo.
Nada disso consegue chegar perto de gerar interesse ou qualquer engajamento por parte do jogador. Por incrível que pareça, são os diálogos rasos que ora servem de contextualização entre uma passagem e outra, ora temperam o próprio gameplay, que acabam nos ajudando a não cochilar em alguns trechos de pura caminhada improdutiva, porque no final das contas, Ivanovich é um exímio contador de histórias e seu interlocutor se mostra tão irritado quanto intrigado com cada novo absurdo contado. O grande pecado do jogo é basicamente se apoiar em sistemas simplório de jogabilidade (o que, às vezes, pode ser um belo acerto porque quase sempre menos é mais, mas não nesse caso) e jamais apresentar um recheio para que o jogador se sinta desafiado, ou ao menos cativado a embarcar na proposta. É um jogo de muitos vazios, com pitadas econômicas de densidade, mas com bem menos inspiração que outros tantos exemplos do gênero.
Tudo isso poderia tornar Little Orpheus insuportável não fosse um bom trabalho de ambientação e de estabelecimento de uma atmosfera convidativa. Desconsiderando o péssimo momento para o lançamento, a narrativa é engenhosa e a história que está sendo contada é fascinante e muito criativa. Como estamos diante de um relato que basicamente tem como objetivo mostrar ao general o porquê esse pobre coitado não deve ser executado ou coisa do tipo, sente-se um misto de curiosidade pelo que vem a seguir com descrença de algo tão improvável ter acontecido com esse sujeito e com a bomba que ele procurava. Esse mundo extraordinário do qual ele fala é lindo, afinal.
O estilo artístico adotado, que abusa dos traços cartunescos para personagens e das cores vívidas para ambientes e cenografia, brilha na maior parte do tempo, mesmo que seja evidente que o jogo não tem qualquer pretensão de se tornar um expoente do poderio gráfico das novas plataformas e coisas assim. Como adiantado, é um jogo inicialmente produzido para sistemas mobile, e como tal, usa bem de recursos técnicos para apresentar belas paisagens intercaladas com ambientes fechados mais sombrios e econômicos. O trabalho de iluminação global nem sempre consegue fazer valer o competente trabalho artístico e, sejam cenários escuros demais, sejam alguns enquadramentos questionáveis, luz e sombra pouco acrescentam ao jogo, salvo boas soluções onde algumas projeções favorecem a precisão por parte do jogador.
Modelos e animações também cumprem seu papel a contento, ainda que sem tantos destaques individuais, o que também vale para sonoplastia e trilha musical. O trabalho de vozes – sem opções dubladas para o nosso português brasileiro – segue aquele tom canastrão que poderia funcionar em uma farsa, mas que acaba passando do ponto na estereotipagem de personagens, lugares e situações. Se ao menos houvesse nuances mais ácidas como há no remake de Destroy All Humans! 2 Reprobed (que por si já pode ser datado) seria algo a se relevar, mas a sensação é o clichê pelo clichê, é a piadinha por ela mesma, e aí pouco importa a homenagem ou a estética revisitada, porque quando a referência é vazia, ela não se sustenta. E, pior, ela acaba abarcando significados outros que estão a mercê de contextos.
Nem tudo em Little Orpheus é descartável, claro. Se você buscar bem, vai encontrar ali algumas boas menções e situações clássicas da cultura pop, que vão desde os filmes de desastres norte-americanos até animações tradicionais dos anos 1940. Há até uma participação especial que descola um sorriso do rosto aqui, uma inspiração visual que merece um respiro de satisfação acolá, mas são pontos de exceção, infelizmente. O mesmo vale para o gameplay, que sempre que parece estar pronto para embalar, estaciona e volta ao básico sem qualquer vergonha. Para aventuras mais casuais e descompromissadas, pode até funcionar, mas sem qualquer destaque. O resultado é um jogo que garante uma campanha de umas quatro ou cinco horas (que parecem muito mais pelo tom arrastado da ação) que se garante numa segunda run porque os colecionáveis, como roupinhas e artes conceituais, só aparecem depois que se supera um estágio ao menos uma vez.
Esta curta duração poderia ser outro problema na recomendação do jogo não fosse o fato dela durar o suficiente para que o jogo não comece a irritar. A partir da segunda ou da terceira fase, confesso que já estava na contagem regressiva para ver quantas ainda faltavam. São episódios insuportáveis? Eu não diria isso. Estão longe de ser alongados também. Mas quando o jogo deixa claro que não tem muito mais a oferecer do que aquilo que você pode conferir no vídeo dos primeiros minutos que antecede esse texto, esvai-se também qualquer empolgação com o que vem adiante. Por isso, a parte final do epílogo, por mais batido que seja, se mostrou um diferencial. Porque ao menos trouxe um pouco de emoção ao tom regularmente morno de toda a jornada.
Little Orpheus é, em resumo, uma coleção de pequenas decepções. Uma história que parece bastante inapropriada para o contexto geopolítico atual e cheia de soluções simplórias; mecânicas que pareceriam superadas até na comparação com os primeiros Prince of Persia ou o saudoso Pitfall; um ritmo modorrento e pouco desafiador com longas passagens de nada temperados com situações já vistas uma centena de vezes antes (como ficar atrás de uma pedra esperando que o vigia mude o foco de luz de lugar); e um estilo artístico que até tem seus momentos, mas que está longe de encantar dada a plataforma original de sua concepção. Se a produção mirou em Verne, flertou com a Sessão da Tarde, se aproximou da falta de sensibilidade e acabou acertando mesmo é no cesto da irrelevância.
Jogo (versão de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela Secret Mode.
Veredito
Little Orpheus acaba se mostrando um produto ordinário e medíocre em cada aspecto do que se propõe, mesmo que se desconsidere o péssimo timing de lançamento. Com mecânicas simplórias e um level design pouco inspirado, é tedioso, às vezes engraçadinho, mas na maioria do tempo é só fraco mesmo.
Little Orpheus turns out to be an ordinary and mediocre product in every aspect of what it proposes, even if the bad timing of its release is disregarded. With simple mechanics and an uninspired level design, it’s tedious, sometimes funny, but most of the time it’s just really weak.
[/lightweight-accordion]