Soul Hackers 2 foi um anúncio bastante inesperado que conquistou minha atenção desde o início e, considerando o título anterior da equipe (#FE para Wii U/Switch), minhas expectativas eram por um ótimo e inconvencional RPG. Felizmente, Soul Hackers 2 correspondeu às minhas expectativas, trazendo uma experiência com mecânicas comuns aos títulos da Atlus, mas com implementações e conteúdo bastante únicos. O resultado é um ótimo RPG, cuja qualidade permaneceu consistente durante toda sua duração.
Soul Hackers 2 se passa em um futuro distante em que os desenvolvimentos tecnológicos, econômicos e sociais estão completamente estagnados. A história se inicia quando Aion, uma entidade digital, prevê que uma série de eventos em andamento irá resultar na destruição do mundo. Aion tem uma política de não interferência com a humanidade, no entanto, a ameaça iminente faz com que crie duas entidades, Ringo e Figue, para investigar e impedir a calamidade iminente.
Ringo é a protagonista do título e, além de possuir uma personalidade cativante, é uma personagem que participa de maneira bastante ativa em todos os aspectos da história. É uma característica bastante rara nos RPGs da Atlus que, usualmente, optam por utilizar protagonistas genéricos cujo senso de urgência é delegado a outros personagens ou diretamente ao jogador. Nos primeiros minutos de jogo, por exemplo, Ringo tem a missão de garantir a segurança de Arrow, um invocador de demônios, e cuja morte é um dos eventos que leva o mundo à destruição. Infelizmente, Ringo encontra Arrow já morto e, por decisão própria, resolve utilizar do Soul Hack, uma habilidade poderosa e arriscada, para revivê-lo. O procedimento é bem sucedido e Arrow se une a Ringo para impedir o fim do mundo e que cujo envolvimento está ligado a uma facção inimiga a que ele trabalha.
A investigação de Ringo se inicia com o resgate de Arrow e, inicialmente, ambos carecem de informações precisas sobre porque o mundo está sendo ameaçado e como evitar o Apocalipse. Ringo e sua equipe investigam todas as pistas e pedaços de informação que conseguem juntar, gradativamente revelando toda a lógica e escala por trás da trama. A construção gradual da história é muito bem executada, prendendo a atenção do jogador com questionamentos e respostas de maneira bastante intermitente e, também, com as ações dos personagens para obter mais peças do quebra-cabeça. A trama principal tem um ritmo excelente e conta com vários momentos que, certamente, irão surpreender os jogadores. Algumas explicações achei, pessoalmente, difíceis de aceitar, mas que aconteceram poucas vezes.
Além da trama principal, há uma quantidade considerável de objetivos e eventos opcionais que permitem observar e saber um pouco mais das pessoas que vivem nessa sociedade futurística. Ringo, sendo uma entidade digital presa a um corpo biológico, têm uma enorme vontade de compreender os seres humanos em todos os seus aspectos como pensamentos, atitudes, ações, cultura e muito mais. A sede por conhecimento é interessante, mas o que a torna uma personagem extraordinária é seu ponto de vista único, seus constantes questionamentos daquilo que tomamos por óbvio e, também, no fato que ela continuamente apresenta sua própria opinião, levando a discussões interessantes entre a equipe sobre vários diversos assuntos e ao amadurecimento do grupo. Isso tudo é realizado de maneira bastante sutil e natural, sendo que muitos desses diálogos são providos de eventos opcionais e que certamente incentivam o jogador a explorar tudo aquilo que pode.
Um dos pontos de Soul Hackers 2 é o foco em um pequeno grupo de personagens adultos e com personalidades, crenças e atitudes muito bem definidas. O grupo de Ringo tem poucos integrantes, todos com mentalidades bastante únicas e isso resulta em um grupo que deve trabalhar junto apesar de suas inúmeras diferenças. Naturalmente, esses indivíduos concordam e discordam em vários aspectos, se apoiam nas horas difíceis e também entram em conflitos e discussões entre si. É um grupo mais caótico, natural e interessante se comparado, por exemplo, aos jogos Persona que têm um grande número de membros, mas cujos conflitos da equipe usualmente ocorrem de forma externa à mesma.
Apesar do fim do mundo ser uma motivação bastante lógica, cada personagem tem uma razão pessoal para se unir ao grupo e que se entrelaça com a trama principal. Os momentos da história, dedicados a personagens específicos, foram alguns de meus favoritos durante o jogo, permanecendo na memória como momentos chave do título. De maneira semelhante aos jogos Persona, Ringo pode aprofundar sua amizade com seus companheiros de equipe avançando na história ou por eventos opcionais. Durante as missões principais, o jogador pode escolher como Ringo responde a certos eventos e cada opção aumenta a afinidade com um determinado personagem sendo que, felizmente, o jogo demonstra claramente qual resposta está mais alinhada com qual personagem. Os eventos opcionais, por sua vez, ocorrem usualmente em um bar em que Ringo pode chamar seus companheiros de equipe para beber e conversar sobre vários assuntos. São conversas bastante interessantes e divertidas e que também dão suporte a construção da equipe principal e suas interações.
Em termos de jogabilidade, Soul Hackers 2 utiliza das características clássicas de um dungeon crawler da série Shin Megami Tensei, ou seja, o jogador vai explorar calabouços enormes, batalhar, encontrar novos demônios para se juntar a sua equipe e vários tesouros. Assim como as demais mecânicas, a exploração em SH2 implementa essas características de maneira única.
Ao entrar em um calabouço, Ringo envia seus demônios para explorá-la de antemão e, encontrar seus próprios demônios no mapa, faz com que eles providenciem o jogador com itens, demônios para recrutar, cura, entre outros. É uma implementação interessante, pois significa que os pontos de interesse de um calabouço estão constantemente sendo atualizados enquanto o jogador explora o mapa. Obter demônios também não depende mais da negociação, bastando que um dos demônios de sua equipe o introduza a equipe e que o jogador aceite pagar o preço de sua inclusão. Caso queira um demônio específico, basta derrotá-lo algumas vezes no mapa para aumentar as suas chances de ser recrutado. Simples e efetivo.
A exploração também conta com uma série de funções convenientes como o mapa sempre presente e navegável em todos os momentos, salvamento automático antes de uma luta contra chefe, avisos de quando o jogador está para enfrentar um inimigo poderoso, possibilidade de salvar em qualquer localidade, entre outros. São conveniências que, francamente, espero ver em futuros títulos da Atlus.
Entretanto, o título também tem uma variedade dessas conveniências que foram implementadas de forma parcial ou que com pequenos ajustes seriam muito melhores. Por exemplo, no mapa todos os inimigos são simbólicos ao invés dos modelos utilizados em batalha, a função de avanço rápido das animações em batalha é restrita ao modo de ataque automático, o mapa não é visível por um menu onde o jogador não precisa se preocupar com seus arredores, o acesso a alguns níveis e lojas às vezes se torna inconveniente e por aí vai. São várias pequenas coisinhas que incomodam e que podem facilmente ser ajustadas por meio de patches.
Os calabouços tem um tema único e, usualmente, são bastante fáceis de serem explorados, utilizando de poucas mecânicas do gênero como portas de uma direção ou portas liga/desliga para forçar o jogador a planejar uma rota. O layout de cada um desses estágios é bom, mas também sem grandes surpresas ou desafios. Há um enorme calabouço especial, a Soul Matrix, que é essencialmente opcional e tem um tema bastante genérico em todo seu percurso.
Sendo um conteúdo largamente “opcional” não seria problemático, mas a Soul Matrix é o único modo de se obter habilidades importantíssimas, ver alguns dos melhores eventos e desenvolvimentos de cada personagem e, também, servir como uma forma bastante eficiente para obter dinheiro, itens e demônios. Essa é uma fase particularmente longa desde o seu início, mas conforme o jogador avança, os níveis vão ficando mais confusos e complexos e ainda utilizam de séries de teletransportes que servem somente para confundir o jogador, me trazendo péssimas lembranças da infame última dungeon de SMT4A. É um estágio que os jogadores irão facilmente passar uma dezena de horas e também a parte mais cansativa do título.
Há várias habilidades que ajudam na exploração, no entanto, seu modo de obtenção é compartilhado com outras habilidades de batalha que são, francamente, muito mais úteis. Ringo, por exemplo, tem uma velocidade de caminhada lenta e, de fato, existe uma habilidade que aumenta isso. No entanto, pegar essa habilidade de caminhada rápida implicaria em deixar de obter uma habilidade de combate mais cedo. Consequentemente, acabei o jogo praticamente sem obter quase nenhuma dessas habilidades de exploração e quase todas as de batalha.
Ao contrário de todos os spin-offs da série Shin Megami Tensei que joguei até o momento, Soul Hackers 2 não utiliza o sistema Press Turn ou de um derivado dele em seu combate. No sistema Press Turn, acertar fraquezas garante turnos adicionais, enquanto que errar ou ter seus golpes anulados faz com que percam-se turnos como penalidade. É um sistema estratégico, mas que também tenho uma relação de amor/ódio dependendo do título.
Soul Hackers 2 mantém o combate por turno, no entanto, acertar fraquezas não garante turnos adicionais e também errar golpes ou tê-los anulados também não resulta em penalidades adicionais além do ataque perdido. A principal mecânica é o Stack (ou pilha, em português) que, ao atingir uma fraqueza de um inimigo, coloca um demônio na pilha. Após todos os integrantes da equipe agirem, os demônios da pilha atacam todos os inimigos causando um alto dano e o valor retorna a zero.
A mecânica é semelhante ao All-Out Attack visto nos Persona modernos, mas com uma série de habilidades para dar suporte a mecânica e torná-la mais estratégica. Por exemplo, acertar uma fraqueza garante que um demônio seja adicionado à pilha, mas acertar a fraqueza com um personagem específico e causar um crítico pode fazer com que até três demônios se juntem à pilha de uma vez só. No início é difícil fazer um combo muito maior do que 3 ou 4, mas ao final do jogo, é bastante comum construir pilhas com 10+ demônios.
Outra característica interessante do combate é o foco nas habilidades de cada personagem ao invés do uso direto de demônios como membros da equipe, algo bastante incomum em SMT e seus spin-offs. Os demônios agem como equipamentos para os personagens e, por sua vez, os personagens ganham acesso às habilidades e aos status do demônio equipado. Cada personagem pode equipar somente um único demônio e as demais habilidades do personagens são, principalmente, providas de suas armas que podem ser customizadas com habilidades adicionais e melhores status. A melhoria das armas é um progresso gradual e bastante fácil de ser acompanhado, sem a necessidade de grind excessivo para se obter um material. Há outros equipamentos que complementam ainda mais o conjunto de cada personagem, dando bastante liberdade para o jogador determinar a estratégia de sua equipe.
Complementando a mecânica de pilhas e o foco nos personagens, Ringo é capaz de utilizar comandos especiais, uma única vez por turno. Esses comandos especiais podem aumentar os status da equipe, fazer com que a pilha de demônios se foque em um único oponente ao invés do grupo inteiro, trocar os demônios equipados durante o combate e muito mais. É particularmente a mecânica que mais faz o jogador estrategizar suas opções, pois são habilidades que podem alterar drasticamente o andamento de uma luta. Após o uso, cada uma dessas habilidades tem um número de turnos de indisponibilidade antes de poder ser utilizada novamente. Jogando na dificuldade difícil, o título nunca se tornou excessivamente frustrante ou entediante, sendo possivelmente o título da Atlus com o melhor balanceamento que já joguei e um que, efetivamente, me forçou a utilizar de todas as suas mecânicas de maneira inteligente para derrotar os chefes e me sentir propriamente desafiado.
A produção do título demonstra um cuidado e polimento em diversas áreas, mas é bastante claro algumas limitações presentes. Graficamente falando, o jogo não é uma mestria técnica, optando por utilizar de um estilo de arte bonito e consistente que resulta em um visual agradável. Os cenários da cidade têm mais luzes, enfeites e objetos, mas boa parte dos calabouços carece desse tipo de detalhe, parecendo bastante vazios e simplórios.
A música também não me marcou durante boa parte da jornada com somente algumas poucas trilhas no final do jogo que me chamaram a atenção. A dublagem está disponível em inglês e japonês e, tendo jogado com a dublagem em japonês, o trabalho dos atores foi excelente e a tradução do título também.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Atlus.
Veredito
Soul Hackers 2 é título diferente do que usualmente se espera da Atlus, mas também é um dos seus melhores e mais originais jogos nos últimos anos. É um título altamente recomendado se você já é fã dos jogos da produtora ou de RPGs por turno no geral.
Soul Hackers 2 is a different title than what is usually expected from Atlus, but it is also one of their best and most original games in recent years. It’s a highly recommended title if you’re already a fan of the company’s games or turn-based RPGs in general.
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