Apocalipse zumbi. Quantas vezes você já viu jogos (e outras tantos produtos de entretenimento) que se pautam por esta ambientação? Certamente serão vários os exemplos que virão à sua mente enquanto lê esta análise. O mesmo acontecerá quando a provocação tiver relação com jogos que lidam com sobrevivência, gerenciamento de propriedade e cultivo de recursos agrícolas. Isso significa, então, que Deadcraft, game que acaba misturando tudo isso com mais outras coisas, é só uma soma de clichês e elementos que já vimos milhares de vezes por aí, certo? Bem… sim e não. O uso ora criativo, ora tradicional desses elementos consagrados é ao mesmo tempo o maior trunfo e o maior desafio do jogo.
Certa vez, debatendo com um amigo quando líamos “Orgulho, Preconceito e Zumbis”, uma versão alternativa do clássico romance de Jane Austin, lembro-me de que concordamos com a ideia de que tudo parece mais legal quando você insere zumbis no meio e, no caso dessa obra literária, a adaptação foi tão bem conduzida que parecia ter sido concebida como realmente um drama de época, com tramas românticas e conspirações familiares em meio a uma infestação de mortos-vivos. Não sei se Deadcraft partiu da mesma premissa, a de colocar esse elemento mórbido junto a outro distinto, mas não há dúvidas de que o pacote, como um todo, é bastante surpreendente. Afinal, como The Walking Dead já nos mostrou uma vez, quando o mundo acaba, não dá pra viver só de sardinha vencida encontrada em casas abandonadas.
No jogo, assumimos a pele de Reid, um sujeito nascido em um momento após um meteoro devastador ter atingido a Terra e, além da destruição a la Armageddon que quase devastou a vida no planeta, nos presenteou com um vírus alienígena que transformou a maior parte dos poucos sobreviventes do impacto nos comedores de cérebros que já conhecemos bem. Reid, porém, não é um humano comum, e passou por um processo onde teve contato com o tal vírus ainda em gestação, mas não a ponto de transformá-lo completamente. Como resultado, ele se tornou um híbrido, um elo entre os dois opostos. Um meio-vivo, por assim dizer. E se você reconhece aqui alguma similaridade com as origens de outro personagem famoso, Blade, estará certo ao entender o que essa especificidade significa para o herói.
Como é de se esperar, a condição de Reid não é algo que se veja como positivo por parte das pessoas que estão reconstruindo sua própria versão de sociedade nos moldes de filmes como Mad Max. Perseguido e humilhado pelo líder da comunidade onde cresceu, conhecido como Nebron, resta-lhe se recolher ao isolamento e tentar reconquistar seu lugar para, aí sim, ter a chance de se vingar de seus algozes. É nesse ponto onde assumimos o controle da história. Isolados em um casebre caindo aos pedaços, somos apresentados às principais mecânicas de sobrevivência do jogo: será necessário comer, tomar líquido, e em um mundo onde a produção de comida e a disponibilidade de água são escassos, teremos que apelar para coisas, digamos, pouco ortodoxas.
O cardápio, já desde o início, será composto por iguarias como carne de rato mutante (na melhor das hipóteses, aqueles que caçamos, mas quando necessário, carniça será uma opção) e fluidos quase sempre contaminados. Mais adiante, poderemos cultivar vegetais puros ou também infectados, captar água do ambiente, purificar coisas que coletamos e tudo o que já podemos prever. Quanto mais consumirmos alimentos frescos, maior a nossa saúde humana. Já se buscamos saciar a fome e a sede com coisas podres, nosso lado zumbi aflora com mais força. Curiosamente, porém, isso não significa algo necessariamente ruim, como em outros jogos similares. Ambas as formas são úteis e podem ser fundamentais em várias passagens da aventura.
Ao explorar o mundo – um mapa bastante restrito e um pouco labiríntico – encontramos outros sobreviventes comuns (alguns amistosos, outros nem tanto) que nos contam sobre sua história e continuam tentando seguir adiante, além de claro, trombar com os infectados, hordas e mais hordas deles. Neste momento, além dos medidores dos quais falei (fome e sede), outros dois ganham maior importância, que é a barra de HP, clássica e tradicional, e a de energia. Enquanto a primeira se comporta como se espera, a segunda é consumida conforme se realizam ações diversas, como lutar, coletar itens, trabalhar na horta, correr, etc. Caminhar e conversar não consomem essa barra, mas a não ser por um ou outro momento de comércio e diálogos para cumprimento de missões, não há muito o que se fazer sem energia e quando ela acaba, é a barra de vida que começa a ser consumida.
Isso tudo significa que o jogo se resume em ciclos onde o jogador precisa explorar o ambiente, coletar recursos, sobreviver aos inimigos, cumprir tarefas específicas, cultivar seus alimentos, fabricar itens e melhorias e, quando a canseira bater, dormir para recuperar as forças. Ficar sem comer ou beber é um péssimo negócio, primeiro porque isso prejudica o desempenho nas ações do dia-a-dia e segundo porque essas barras de energia e vida se recarregam de acordo com o nível de saciedade de Reid. Ou seja, se dormir com fome, sua barra de vida recupera pouco; se dormir com sede, é a energia que não será grande coisa no dia seguinte. Não demora para que percebamos que o melhor a se fazer é descansar com a barriga cheia.
Se no início esses elementos parecem muito frágeis – bastam algumas pancadas ou meia dúzia de batalhas para estarmos cansados, quase mortos ou os dois – e ter que voltar pra casa e dormir duas vezes por dia parece um exagero, logo é possível melhorar uma infinidade de características em árvores de habilidades gigantescas, o que nos dá um pouco mais de margem de ação e autonomia. Os efeitos da escassez, portanto, são mais rígidos no começo da campanha, e conforme a história avança, outras preocupações vão se tornando mais prioritárias. Não que comer e beber deixem de ser necessários em algum momento, mas quando se pode produzir tudo em casa, é muito mais fácil do que se arriscar para coletar em um mundo hostil.
Mas nem só de comida vive um agricultor meio-vivo, e não demora para que aperfeiçoemos nossas técnicas de plantio para cultivar nossos próprios zumbis. Sim, plantar cadáveres de gente normal que por ventura tenhamos eliminado e cuidar com amor, carinho, e fluido infectado nos gera fiéis seguidores que serão muito úteis no campo de batalha. E se a batalha foi sangrenta demais, também não se pode desperdiçar pedaços de gente, e tudo pode ser reaproveitado na confecção de itens de combate, melhorias para a defesa e deliciosos elixires. Em um mundo estragado, nada se perde, nada se desperdiça, tudo se torna recurso para sobreviver mais um dia.
Normalmente, esse momento de construção e melhoria de itens e recursos pode ser bastante burocrático em alguns jogos similares, e Deadcraft não foge tanto assim do padrão. Contudo, a diversidade de coisas a de montar a cada novo ciclo de dia e noite é divertido e valoriza o trabalho árduo de coleta durante as aventuras do herói. É possível construir elementos sempre se apropriando dessa dualidade dentro dele, ora para retroalimentar sua parte viva, ora para se aproveitar de sua conexão com o bizarro. Armas, ferramentas secundárias, elementos de defesa, itens de cura, tudo pode ser criado na mesa de forja, enquanto alimentos podem ser cozidos na boa e velha fogueira. Mais ou menos como um cidadão comum, que trabalha o dia todo e no final da jornada diária, com o pouco de forças que lhe resta, tem que cuidar de casa, aguar as plantas e montar a marmita do dia seguinte.
Esse misto de cultivo com sobrevivência é responsável por toda a cadência do game, que tem um ritmo mais lento se fosse comparado a outros jogos de ação mais convencionais. Soma-se a esse gerenciamento a organização de tarefas e aprendizagens da primeira metade da campanha (que pode chegar a 15 horas para uma primeira jornada, um pouco mais para quem deseja desbloquear a maioria das melhorias que importam) e temos um jogo um pouco mais lento do que poderia ser. Isso porque as primeiras missões são muito mais tutoriais contextualizados do que ações de livre realização. Então, as primeiras 5, 6 horas são povoadas de missões como “adquira item X”, “fabrique item Y”, “melhore o atributo Z” que ensinarão como funciona a progressão de personagem, sem contudo caminhar adiante com a narrativa em si.
As missões secundárias também não são tão adaptativas assim ao estilo do jogador. Em games de mundo aberto, RPGs e afins, eu particularmente vou aceitando todas as solicitações de NPCs, tarefas em painéis e coisas do tipo, e vou cumprindo conforme surge a oportunidade, ou quando estou entre missões principais, aquela dinâmica já bastante comum. Aqui, só se pode assumir uma missão secundária de cada vez – o que significa abandonar a anterior mesmo que estiver em andamento – e com o ciclo curto de dia e noite bastante rápido, dá pra fazer uma coisa e outra antes da obrigação de se descansar. As vezes, é literalmente uma coisa ou outra, o que impacta radicalmente na conclusão de atividades paralelas.
Como grande parte das missões principais (e algumas secundárias) é pré-requisito para se liberar melhorias, receitas e habilidades, o processo se torna bastante linear, impedindo que, por exemplo, nos especializemos em armas de fogo em detrimento a armas brancas. É sempre uma, depois a outra, depois um tipo de alimento, depois outro, e assim por diante. Essa liberdade de se especializar em alguns elementos melhora, uma vez mais, da metade da campanha para frente, mas até lá, tudo aparece mais amarrado do que deveria, algo que se potencializa pela limitação do cenário que acaba resultando em um vai e volta pelos mesmos corredores por dias (no tempo do jogo) variando muito pouco do que foi feito nos ciclos anteriores.
Visualmente, o jogo traz belos cenários áridos muito bem iluminados durante o dia e pouco soturnos a noite, valorizando um espaço amplo do campo de visão. Os modelos humanos lembram os gráficos de duas ou três gerações anteriores, sobretudo com expressividade bastante simplória e movimentos pouco naturais, mas isso importa muito mais em cenas de corte do que durante a gameplay em si. O já batido filtro cel shading nem sempre funciona a contento, e o jogo não consegue ser sólido nem como uma representação tridimensional do ambiente, nem como cartoon, e nesse caso, a mistura acaba não resultando em algo satisfatório. O jogo não é feio, ou mal feito, mas realmente se destaca pouco e, quando o faz, nos lembra de algo feito há 10 ou 15 anos atrás.
Porém, com um misto entre a seriedade e o ridículo, sobretudo ao exagerar na estupidez dos mortos-vivos (e de alguns vivos comuns também), há um tom jocoso – talvez até involuntário – que funciona surpreendentemente bem. O design dos ambientes é que acaba sofrendo com algumas texturas repetitivas, outras de baixa definição, e no final acabam trazendo poucos momentos onde chamam a atenção positivamente. O desenho do mundo do jogo, por falar nisso, é um tanto quanto pobre e pouco inspirado, o que só amplifica a percepção de que é pequeno e um tanto quanto sem graça. Ir e voltar enjoa rapidamente, algo que só é aliviado quando aprendemos a criar um item inusitado de viagem rápida.
Já a banda sonora, por sua vez, traz efeitos bem ajustados, ainda que econômicos, e uma trilha esquecível. O trabalho de vozes remete àquele tom de produção B que Deadcraft pede, mas há diálogos falados só entre missões principais, sendo a maioria das conversas opcionais, como aquelas com vendedores, NPCs aleatórios e outros encontros com personagens mais importantes somente por texto e algumas palavras faladas soltas, como “ok” ou “yeah”, o que significa que nem sempre as passagens que explicitam um pouco mais daquele mundo são interessantes ou ágeis como se espera. Aliás, o texto do jogo é bastante básico, as vezes até expositivo demais, e quase ninguém apresenta qualquer traço de personalidade e carisma, incluindo o próprio herói.
Elementos técnicos e narrativos podem ter pesos diferentes dependendo da expectativa do jogador. Considerando que as mecânicas de combate são muito bem ajustadas, há muito o que se aproveitar do jogo quando a coisa engrena. Se no começo temos uma mesma arma melee para dar cabo dos desmortos, com paciência podemos sim compor armas de longo alcance, como pistolas e outras armas de fogo menos convencionais. O mesmo vale para equipamentos de enfrentamento corpo-a-corpo, que variam em relação a velocidade de ataque, poder de dano, alcance em área, e há muitas a se escolher para montar um set equilibrado. Se o jogador for persistente, conseguirá sim organizar seu arsenal de acordo com seu estilo.
Tudo se torna um pouco mais sofisticado quando entendemos que cair pro lado sombrio da força zumbi não é exatamente um problema e, ao contrário, pode ser bastante útil em situações de desespero. Quando nos transformamos, os humanos comuns não suportam estar perto de nós, então automaticamente nos atacam, mas em campo aberto onde só há cadáveres ambulantes a coisa muda de figura, inclusive porque nesse modo, temos acesso a ataques devastadores em área, incluindo um estado de máxima fúria que, acredite, faz um bom estrago em hordas inimigas desavisadas. Andar cambaleante e de forma lenta é um problema, certamente, mas com tempo e experiência, fica fácil entender onde cabe cada abordagem.
Mesmo com algumas observações, Deadcraft é daqueles jogos que podemos olhar para alguns defeitos e torcer o nariz, mas ao mesmo tempo relevá-los porque seus melhores atributos conseguem motivar o suficiente, a aquisição de pontos de experiência para melhorias é bastante abundante e coletar recursos felizmente foge daquele modelo onde você demora horas pra achar alguma coisa que consume em frações de segundo. Um exemplo é que mesmo não sendo dedicado a ficar fuçando em todos os cantos, nunca me faltou água ou alimento, por exemplo, e tão logo aprendi a produzir (ou automatizar a aquisição), foram poucos os perrengues nesse sentido. O que faltava, sempre, era energia para fazer mais coisas antes de voltar pra casa (usando viagem rápida ou as pernas) pra dormir.
Com um tipo de humor peculiar, aquele mais caricatural de situações, é uma experiência que surpreende mesmo aqueles que não são adeptos a jogos especializados nos aspectos de cultivo e de sobrevivência, primeiro porque mesmo com todas as dificuldades de um mundo estragado, nunca chega a faltar coisas a ponto de incomodar, e segundo porque os processos de fabricação e retroalimentação são bem práticos, ao contrário de jogos que nos fazem coletar dezenas de ingredientes para uma única composição. Quer tomate assado? Pegue o tomate e coloque no fogo. Simples assim. Então não será necessário parar tudo e ficar só craftando materiais por dias. Mesmo que as missões permitam pouco acúmulo, elas ao menos duram pouco e são mais diretas ao ponto.
Deadcraft é, sem dúvidas, uma experiência bastante única, mesmo que, tal como nosso protagonista, seja uma colcha de retalhos que conecta uma série de mecânicas que já vimos em outros lugares, na maioria das vezes com maior profundidade. Se o aspecto técnico não é dos mais virtuosos da produção, há um sentido todo inocente que garante ao jogo uma simpatia capaz de nos fazer pensar que se algo não é das coisas mais criativas do mundo, tudo bem, porque é divertido mesmo assim.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela XSEED Games.
Veredito
Misturando sistemas de sobrevivência, cultivo de alimentos (e outras coisas pouco usuais), e aquela carnificina imprescindível de mundos tomados por mortos-vivos, Deadcraft tem suas limitações técnicas e não se aprofunda em nenhum dos seus principais aspectos, mas consegue equilibrar seus elementos de forma divertida e surpreendente.
Mixing survival systems, food cultivation (and other unusual things), and that essential carnage of worlds taken over by undead, Deadcraft has its technical limitations and does not delve into any of its main aspects, but it manages to balance its elements in a fun and surprising way.
[/lightweight-accordion]