O período Edo do Japão feudal é, sem dúvidas, um dos momentos históricos que mais inspiram a cultura pop, e não faltam exemplos interessantes – e outros nem tanto – que, partindo de referências reais ou tomando algumas liberdades fantásticas, buscam recriar toda uma cultura a partir de sua simbologia, valores e heranças éticas e morais que até hoje perduram não só em sua região original, como transbordam para todos os cantos do mundo. Não nos é estranho, portanto, que o mundo dos games também beba desta fonte, nos trazendo, sobretudo nos últimos anos, algumas obras icônicas, e Ghost of Tsushima é, obviamente, uma das memórias populares mais recente de muitos de nós.
Não é possível falar sobre a presença dos referenciais samurais nos dias de hoje sem cair na necessária obviedade de citar um dos maiores cineastas de todos os tempos, o grande Akira Kurosawa, que não só trouxe toda uma identidade para o gênero como sedimentou algumas das principais referências para basicamente tudo o que veio depois. Rashomon e Os Sete Samurais estabeleceram bases fundamentais em termos de fotografia, enquadramento e trilha sonora que mais tarde se tornariam inspirações para obras como os Western Spaguetti de Sergio Leone (cujos filmes se tornaram grandes marcos do audiovisual, como por exemplo Três Homens em Conflito, ou no original The Good, The Bad and The Ugly) ou até algumas sagas ainda mais populares, como um tal de Star Wars.
Mesmo quem nunca teve a oportunidade de assistir qualquer obra do diretor consegue reconhecer alguns vislumbres de seu legado, tamanha a força do movimento que ele liderou sobretudo a partir da década de 1950. Mais de setenta anos depois e três parágrafos de reverência a este mestre, cá estamos falando sobre Trek To Yomi, jogo desenvolvido pela Flying Wild Hog e distribuído pela Devolver Digital, e juro que esta longa introdução não é por acaso. Leonard Menchari, principal mente por trás da produção, sempre deixou claro que estava sim se esbaldando no seu grande referencial e que parte dos objetivos do jogo seria, inclusive, incentivar que as pessoas pudessem conhecer um pouco mais daquilo que Kurosawa nos deixou. Permitam-me fazer minhas as palavras dele e recomendar o mesmo, não porque seja um pré-requisito para jogar Trek To Yomi, mas porque, bem, vale a pena.
Voltando as atenções para o game em si, temos aqui uma síntese das principais temáticas do gênero. Acompanhamos a jornada de um espadachim solitário na busca por compreender – e ressignificar – valores como honra, compromisso, dever, disciplina e amor, sobretudo quando é confrontado por suas próprias escolhas. Seu caminho o levará a lugares inesperados, enfrentando fantasmas do passado e do presente, dando ao nosso herói a oportunidade de tomar importantes decisões para si e para toda a sua comunidade. Falar mais sobre o enredo, enxuto por definição, seria entregar demais, mas a sugestão aqui é buscar compreender não só a narrativa da superfície, mas também as entrelinhas e todos os simbolismos presentes em cada canto da aventura.
Colecionáveis trazem informações adicionais do universo do jogo e são parte dos maiores atrativos para a exploração dos ricos ambientes pelos quais passamos, e por mais que seja uma convenção pensar que textos explicativos em objetos podem se tornar cansativos, Trek To Yomi é conciso e jamais se torna maçante. Muito bem localizado para o português brasileiro nas legendas (e nesse caso, ouvi-lo no idioma original faz parte da imersão), o ritmo do desenvolvimento da trama é agradável e sem barriga. A campanha, em torno das 6 horas de duração – provavelmente menos nas runs seguintes – pode parecer curta para os padrões atuais, mas se prova bem apropriada para estabelecer a profundidade certa, ainda que as mecânicas principais, a despeito das adições que incrementam as possibilidades do jogo, acabam se mostrando repetitivas a certa altura da trama.
Falando na jogabilidade, há basicamente dois momentos fundamentais que se intercalam ao longo de cada fase: o primeiro deles permite uma exploração relativamente livre do cenário, possibilitando uma movimentação para as várias direções dentro de um sistema do ponto de vista, na maioria das vezes, isométrico. O modelo com câmeras fixas (que lembra uma produção cinematográfica, como o fazia os primeiros Resident Evil, por exemplo) favorece belíssimos enquadramentos bem planejados, mas não foge muito do padrão Diablo de visualização do cenário; o segundo é dedicado ao combate, e nesses pontos a movimentação se torna somente bidimensional, naquele modelo conhecido de progressão lateral. Aqui, nosso protagonista assume a postura de duelo contra os mais diversos inimigos, incluindo chefes de fase.
Durante a exploração, há habilidades específicas que serão exigidas do jogador. Buscar suprimentos, melhorias e colecionáveis (como já citado) é apenas uma das tarefas, que incluem também a resolução de alguns puzzles para abrir os caminhos (na sua grande maioria, de fácil compreensão e execução); conversar com NPCs que nos dão mais algumas pistas sobre o que está acontecendo e, de quebra, podem nos fornecer itens importantes; e também é quando nos permitimos a contemplação de um trabalho minucioso de reconstituição da arquitetura, dos cenários naturais e da produção cultural da época. Já durante as passagens de batalha, não há distrações que não enfrentar todos os adversários para poder progredir e seguir adiante, ainda que sejam nesses momentos onde vislumbramos algumas das composições mais poéticas de luz e sombra de todo o jogo.
Aliás, vale destacar que o trabalho de ambientação de Trek To Yomi é simplesmente brilhante. A composição dos mapas, o desenho de níveis e as escolhas estéticas são simplesmente deslumbrantes. Efeitos de chuva, névoa e passagens de dia e noite são especialmente instigantes, sobretudo no ótimo trabalho de contraste do preto-e-branco, bem como todo o trabalho de efeitos de iluminação (cada contraluz é ainda mais lindo que o anterior) e de partículas, como passagens com fogo. A sutileza dos efeitos de vento em plantas e outros elementos interativos contrasta com a violência harmônica dos movimentos precisos da katana, e quando o clima se mostra mais agressivo, acompanhando a crescente da aventura, tudo faz ainda mais sentido. Este é um dos melhores e mais sólidos exemplos de como contar uma história também pelos elementos cênicos, e não só por artifícios descritivos ou pelo encadeamento de acontecimentos.
Completa essa experiência única o formato de tela, mais alongado, que também remete ao cinema épico de outrora, com belíssimas paisagens ilustrando cada nova passagem. A composição em camadas de cada fase traz consigo toda uma preocupação minuciosa com quadro, como se cada frame fosse pensado enquanto uma pintura. Fica evidente também que lidar com o P&B em uma produção artística vai muito além de simplesmente colocar um filtro por cima da versão colorida e é muito difícil saber lidar com os vários tons de cinza na construção da profundidade e da dramaticidade da contraposição do claro e do escuro, da luz e das sombras, do quente e do vazio. É fascinante prestar atenção em pontos propositalmente com iluminação estourada, outros totalmente escuros, e tudo que há entre uma coisa e outra.
A modelagem de personagens não é das mais impressionantes da geração, porém. Em cenas de corte, que é quando podemos ver personagens de frente, tem-se uma dimensão dessa limitação com pouca expressividade das feições, mas felizmente até isso é parte da construção do tom deste game, onde mesmo quando trata do amor e das relações afetivas, tudo se mostra mais seco do que estamos acostumados em produções genuinamente ocidentais. Já quando se trata das animações de movimento, Trek To Yomi esbanja qualidade e, em muitos momentos, a sensação de fluidez e naturalidade é assustadora a ponto de parecer uma passagem em live action. Ajuda nessa sensação a distância da câmera e o tom monocromático que dá uma textura toda especial ao jogo, e o resultado visual é nada menos que impressionante.
Soma-se a isso uma trilha sonora econômica, quase minimalista que conta com alguns acordes muito significativos do clássico shamisen, intercalados com passagens de um incômodo silêncio. O trabalho de vozes, ainda que traga a entonação e a cadência já esperadas de obras assim, é bastante competente, e a sonorização ambiente cumpre seu papel com muita dignidade. Não é um trabalho de mixagem daqueles mais sofisticados, e creio que nem deveria ser porque rebuscar a simplicidade seria errar pelo exagero. O poder do mínimo, aqui, é fundamental para a necessária cadência do jogo, que está muito distante do ritmo frenético de tantas outras produções, algumas inclusive que tentam representar essa mesma temática. Trek To Yomi é fiel às suas bases e, dentro de sua proposta, bastante rígido com os valores que pretende representar.
Não espere, contudo, no que compete a liberdade de exploração e movimentação, uma versão isométrica ou mesmo 2D do que foi feito em Ghost of Tsushima, Sekiro: Shadows Die Twice ou até Nioh, porque esta não é a meta. Trek To Yomi é objetivo, direto, e mesmo com um ou outro ponto escondido aqui e outro acolá que desvendam diferentes caminhos e salas ocultas, é um jogo essencialmente linear. Partimos do ponto A para chegar ao ponto B em um caminho dividido entre cenas espacialmente bem delimitadas. Os enquadramentos (quase) fixos não permitem que giremos a câmera nem em pontos de passagem, nem de combate, e aliás cara obstáculo – vivo ou não – são artifícios puramente direcionados a testar a capacidade do jogador em seguir em frente, sempre em frente. Há um ou outro recurso de furtividade, duas ou três soluções alternativas às lutas, mas nada muito significativo. Em outras palavras, o conflito será necessário e obrigatório na grande maioria do tempo.
As batalhas em si, contudo, se mostraram o aspecto com o qual eu mais tive dificuldade em me adaptar. A dinâmica é simples e ensinada em um rápido tutorial de meia dúzia de passos, e como poderia se esperar de algo do gênero, está baseada no parry defensivo e no contra-ataque certeiro, o que significa que nem mesmo na dificuldade mais acessível (são três níveis, aliás: Kabuki corresponde ao fácil, Bushido, ao normal e Ronin, consequentemente, ao difícil) funcionaria sair apertando os botões de ataque a esmo como num hack ‘n slash convencional. Há combos mais sofisticados que vão sendo liberados durante a jornada, há equipamentos especiais de ataque a distância que são ótimos complementos, sobretudo contra os inimigos mais encardidos, mas a essência básica é a mesma do começo ao fim. Aprenda os padrões do inimigo, defenda-se adequadamente e o puna em seguida com precisão. De preferência, acostume-se com o timing do parry para abrir a guarda adversária com mais efetividade.
O elemento que me exigiu maior atenção, sem dúvidas, foi a de rápida troca de direção quando em conflito com múltiplos agressores. Há um botão específico para olhar pro outro lado, e há ataques que já consideram essa alternância, mas nem sempre funcionam com a precisão que esperamos por não dar brecha para meios passos. Explico-me melhor: mudar de lado só funciona bem quando estamos prostrados e, portanto, não é simplesmente algo que se faz correndo ou em meio a um movimento de ataque. Apertar X para virar para trás antes de finalizar um golpe, por exemplo, mesmo que seja por uma fração de segundo, não vai funcionar. Aperte duas vezes para “garantir” na hora errada e o efeito é ainda pior. Se o tempo não for acertado, o resultado é catastrófico.
Ou seja, o modelo de combate valoriza a execução perfeita, e tem pouca paciência com os afobados. Na dificuldade mais elevada, uma bobeada nesse quesito pode levar sua barra de vida do máximo para o nada, o que pode significar ter que retornar para um ponto bem anterior. A distribuição de checkpoints (que também funcionam como pontos de salvamento e recarga de barra de vida) aliás, é um tanto quanto inconstante, e não é raro encontrá-los um seguido do outro em certos trechos e, em outros, demorar muito mais para achá-los, o que fortalece ainda mais a necessidade do aprendizado dos tempos corretos de ataque e defesa, algo que se mostra ainda mais inestimável para as batalhas contra os inimigos principais, os chefões de fase, todos muito desafiadores e cada qual com suas particularidades e habilidades especiais. Pessoalmente, o último deles me pareceu menos complicado que os anteriores, talvez porque eu tenha aprendido (na marra) como lidar com os recursos disponíveis antes de chegar ao combate final. Ótima qualidade de level design.
Por sua vez, a interface do jogo é outro aspecto que investe na simplicidade, mas curiosamente acaba cometendo alguns excessos. o primeiro deles está na lista de objetivos, que nada mais são do que um descritivo do que está acontecendo em tópicos, mas com uma disposição parecida com RPGs, jogos de mundo aberto ou outros que permitem caminhos alternativos e tarefas concomitantes. Não faz muito sentido a fase estar dividida em sessões, sendo a maioria delas algo como “fuja de onde está”, “chegue do outro lado da vila” ou coisas parecidas. É um aspecto que não muda em nada o jogo na prática, mas pareceu deslocado. Outras ferramentas também se mostram inconstantes, como a conversa com pessoas pelo caminho, que no começo funciona bem e é constante, mas que de repente some sem aviso. Claro que em certos lugares, é difícil parar pra trocar uma ideia, mas ainda assim, acabou se mostrando uma funcionalidade despropositada no conjunto das coisas.
Detalhes menores, porém, não interferem na grandiosidade – dentro de seu mundo contido – de Trek to Yomi. Ainda que não seja nenhum arrasa-quarteirões, mesmo que não demande dezenas de horas ou semanas de dedicação, é um jogo que alcança a excelência naquilo que propõe. Se a história não é das mais originais, se o filtro preto-e-branco granulado não é exatamente uma novidade, se o modelo frio e limpo de combate já foi explorado antes, aqui está tudo muito bem encaixado com fidelidade e muito respeito às referências explícitas nas quais os autores se apoiaram. Trek To Yomi é uma carta de amor à Kurosawa e à cultura samurai.
Sem abrir mão das particularidades da linguagem dos games, o jogo não pega atalhos, não busca concessões populares, e aposta suas fichas na experiência vívida e singular que só vimos nos grandes filmes do gênero. E sendo leal aos próprios preceitos, encontra uma identidade própria, coerente e coesa e deste modo, emprestando parte da temática do jogo, honra a si e seus valores fundamentais. Não tem como esperar mais do que isso.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Devolver Digital.
Veredito
Trek to Yomi honra todas as suas melhores referências e o resultado é um jogo esteticamente brilhante, com um sistema de combate sólido (ainda que possa parecer repetitivo em alguns trechos), um modelo de exploração seguro e uma cadência narrativa fiel às grandes obras do gênero. Como um todo, uma experiência digna e memorável.
Trek to Yomi honors all its best references and the result is an aesthetically brilliant game, with a solid combat system (even if it may seem repetitive in some parts), a safe exploration model and a narrative cadence faithful to the great works of the genre. As a whole, a worthy and memorable experience.
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