Ora ou outra, o debate sobre aquilo que define um jogo volta à pauta, seja pelas novidades e revoluções constantes nesse meio, seja pela ressignificação do conceito ao longo do tempo. Essa discussão ganhou novos contornos quando experiências narrativas interativas, como as obras da Telltale ou da Quantic Dream, ganharam notoriedade e reconhecimento do público, e a ascensão de plataformas digitais que facilitam ações interativas também trazem novas nuances para o tema, vide o sucesso de público e de mídia de Black Mirror: Bandersnatch, da Netflix, há meses atrás.
Claro, os chamados FMV (ou Full Motion Videos) não são exatamente uma novidade dos últimos anos, e experiências nessa direção já ocorrem há muito tempo, como clássico Night Trap ou o tenebroso Super Seducer. Mas é inegável que a popularização de plataformas interativas tem trazido luz ao tema a cada novo lançamento. The Complex, experiência interativa produzido pela Wales Interactive Ltd. traz uma perspectiva própria e busca dar o passo adiante para o formato se apoiando no seu maior pilar: uma experiência live action rizomática, com múltiplas opções para o jogador encontrar um dos vários finais possíveis a partir de sua leitura da situação e dos personagens.
Assim que a experiência se inicia, a comparação com produtos similares é inevitável, e a própria interface para escolhas irá nos lembrar imediatamente do já citado Bandersnatch. Nos primeiros minutos, somos apresentados a outras funções muito familiares, como o efeito causado nas pessoas (e na protagonista) a partir de nossas escolhas, algo similar ao “fulano vai se lembrar disso” das produções da Telltale ou mesmo à construção da personalidade de Until Dawn, nos mostrando mais frios e sinceros ou mais emotivos e sensíveis, por exemplo. Tão logo se faz uma escolha, esse perfil se atualiza em tempo real e, no final, temos um resumo da vivência toda.
O jogo apresenta 9 finais diferentes, sendo apenas um deles algo secreto que ocorre logo nos primeiros minutos. Os demais são resultado de uma narrativa que, corrida, se aproxima da duração de um longa metragem de uma hora e meia. Depois de uma primeira jornada, é possível pular cenas repetidas para poder escolher novos caminhos e ver outras possibilidades, facilitando bastante a vida de quem gosta daquele “e se…” desse tipo de narrativa. Ainda assim, são poucas as variações realmente significativas, e a grande maioria das escolhas ecoa muito mais nas relações da nossa heroína do que nos eventos da trama.
Dito isso, a análise de produtos como esse pelo prisma convencional dos videogames é um grande desafio. Afinal, não há qualquer traço de jogabilidade a ser explorado aqui, exceto, claro, pela escolha entre duas, três ou quatro opções em certos momentos da história. Ao contrário de adveture games tradicionais, portanto, não há pontos de ação, ou mesmo QTE. Tudo se resume à bifurcações e consequências, mais ou menos significativas dependendo do momento. E, talvez, esse seja um aspecto crucial para compreender The Complex, uma vez que o roteiro aqui parece buscar a convergência e o controle narrativo em detrimento a uma liberdade maior.
Explico melhor: The Complex sabe exatamente que história quer contar. Logo no prólogo da jornada, somos colocados na pele da doutora Amy Tenant, uma médica em campanha no combate a agentes biológicos em um povoado de Kindar, uma nação fictícia governada por um ditador, aqui chamado de Supremo Líder. As primeiras opções são bastante sintomáticas do que viria a seguir e basicamente nos coloca para escolher entre a vida e a morte de duas pessoas enfermas, bem como a nossa abordagem enquanto profissionais da saúde. Não contarei aqui o quanto essas primeiras escolhas afetarão o resto da trama, mas o importante é saber que a cena e abertura é um rápido tutorial do que esperar adiante.
A partir daí, a verdadeira história nos é apresentada. Alguns anos depois, Amy desenvolve, junto a uma grande companhia, uma nova nanotecnologia que tem por objetivo o tratamento médico para expedições espaciais e outras situações similares e, obviamente, pessoas de várias áreas estão interessadas nisso. Antes de entrar em sua versão final, porém, uma pessoa que trabalha junto à equipe de pesquisa é contaminada e cabe ao jogador entender o que e porquê isso aconteceu. Vemos a seguir o desenvolvimento de um verdadeiro thriller, um suspense que lembra filmes e outras obras que tratam de epidemias e pandemias (algo muito popular nos dias de hoje devido a um contexto mundial).
A abordagem do universo construído nos coloca em uma ambientação futurista (ainda que não tão distante assim), mas o game se passa quase que inteiramente no confinamento do laboratório onde Amy e outros personagens se encontram buscando respostas sobre o ocorrido. A construção do ambiente se dá de forma sutil e paciente, mas um tanto quanto confusa, sobretudo ao nos dar informações homeopáticas sobre o isolamento e a contenção desse lugar. Se sairemos e como isso aconteceria, quais as conspirações e quem está falando a verdade ou não serão elementos a se descobrir.
Como uma direção de arte bastante clean e muito adequada ao ambiente laboratorial, a direção geral se mostra, de certa forma, inconsistente. É um tanto quanto difícil entender a espacialidade do local e muitas vezes tudo parece complicado demais. Caminhos e corredores, compartimentos e sub-cômodos acabam parecendo um amálgama de locações desencontradas e nos causam uma certa sensação de estarmos perdidos nesse lugar e, certamente, não parece ser essa a intenção. Efeitos especiais são pontuais e funcionam e a fotografia preza por uma iluminação naturalista, exceto por um ou outro ambiente diferenciado com saturação de um ou outro filtro, mas estruturas internas e externas, ventiladas ou não, estão sempre pautados em uma mesma temperatura de cor. Visualmente, portanto, The Complex parece não arriscar.
Com um roteiro protocolar (e com alguns furos) mas um tanto quanto arrastado em certos momentos, a obra traz atuações na média de produções televisivas tradicionais. Alguns atores e atrizes convencem pouco no papel que desempenham, mas não há aqui qualquer destaque realmente negativo. Como uma produção estritamente de gênero, traz consigo os clichês e arquétipos facilmente reconhecíveis: a heroína inteligente, porém inocente; a CEO de uma grande corporação; o sidekick malandro e que, convenientemente, sabe se virar com hackeamento de computadores; os pontos de virada (quase) surpreendentes, diálogos as vezes sofríveis… tudo é seguro e os diferentes fechamentos são previsíveis e esperados, independentemente das escolhas feitas.
Essa é a questão primordial que, obviamente, faz de The Complex uma experiência a ser analisada aqui e não em um espaço sobre cinema ou televisão: a ramificação narrativa. E neste aspecto, há alguns altos e baixos. São dois os grandes erros que um tipo de produção não pode cometer: primeiro, não dar ao jogador a sensação real de controle e o segundo é não evidenciar que as escolhas são realmente significativas. Infelizmente, ambos acontecem em vários momentos aqui. Um exemplo clássico disso é, em certa bifurcação, dar duas escolhas para o jogador: atender ou não um telefonema, dar ou não um medicamento para o paciente, etc. e o resultado de cada uma delas acabar não importando e desembocando no mesmo desfecho.
O segundo é uma sensação de opções que parecem só existir para justificar a interatividade. Como por exemplo deixar abrir uma porta usando um item ou outro, quando na verdade não fará nenhuma diferença prática, a não ser a exibição de uma cena de 10 segundos diferente. Ainda que haja um valor simbólico e alguns pontos percentuais em elementos como “inteligência” e “sensibilidade”, parecem muito mais elementos para garantir que o jogador não dormiu do que algo que realmente tenha sentido. O fato de ter mais escolhas não torna uma obra mais interativa ou uma escolha mais importante, se não houver um sentido de ser.
Outras escolhas, porém, trazem consigo impacto prático e moral, e realmente transformam a experiência do jogador. Ao assistir a obra duas vezes em sua completude (uma sozinho e outra acompanhado) e mais algumas vezes pulando cenas já vistas, há de fato percepções bastante distintas de cada um dos personagens com base na construção em torno da protagonista. De alguém humanitária a uma corporativista fria, de uma pessoa racional a uma conspiracionista, há certamente boas nuances e ótimas ideias, principalmente no terço final da narrativa.
The Complex está longe de ser uma história das mais impactantes, ou mesmo uma experiência interativa totalmente aberta e significativa, mas dentro de suas pretensões e das expectativas enquanto gênero audiovisual, consegue entreter e garante, ao menos, a curiosidade na busca por alguns de seus finais. Certamente, caberia em qualquer plataforma de streaming para um público muito mais amplo que o da comunidade de videogames, e seria um verdadeiro erro estratégico não lançá-lo em serviços dessa natureza, principalmente porque já conta com legendas para um grande número de idiomas, inclusive o nosso bom e velho português tupiniquim.
Já a discussão sobre a natureza e a essência do jogo fica para outras oportunidades, mas aproximações como a de obras como essa, os visual novels orientais e outras experiências narrativas com graus de participação e imersão diferenciados tornam essa conversa, se não necessária e obrigatória, no mínimo divertida e instigante. The Complex não revoluciona a discussão, mas pode se tornar mais um bom exemplo para se colocar na mesa.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Wales Interactive Ltd.
Veredito
The Complex ousa pouco nos aspectos de roteiro, fotografia e arte, tem uma direção por vezes confusa e problemas na construção de algumas ramificações que propõe. Contudo, consegue divertir e se coloca como um bom exemplar dos chamados full motion videos, propondo um suspense sci-fi bastante adequado para fãs do gênero, uma certa diversidade de escolhas significativas e uma qualidade audiovisual na média de outras produções similares.
In terms of script, photography and art, The Complex dares little, with a direction that is sometimes confusing and problems in the construction of some ramifications that it proposes. However, it entertains and places itself as a good example of the so-called full motion videos, offering a sci-fi suspense that is very suitable for fans of the genre, a certain diversity of significant choices and an audiovisual quality in the average of other similar productions.
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