Definitivamente, a temática dos samurais está em alta, sobretudo no universo dos games. Ainda que nunca tenha saído dos holofotes (e a nossa ainda jovem história dos videogames está aí para provar), algumas produções recentes, tais como Nioh (e sua continuação que ainda está quente no forno) o aclamado Sekiro: Shadows Dies Twice e o vindouro Ghost of Tsushima elevaram todos os parâmetros de protagonismo para samurais, Japão feudal e mitologias orientais. Há, porém, uma série de produções com menos visibilidade aqui no ocidente que garantem uma estabilidade perene dessas temáticas (e outras afins) e a franquia Way of the Samurai é um ótimo expoente dessa linha menos glamourizada desde os tempos de Playstation 2.
Situado na era da Restauração Meiji (período histórico japonês que ocorre por volta do que conhecemos como século XV e que marca uma série de transformações políticas e sociais resultantes da derrubada do Xogunato Tokugawa), Katana Kami: A Way of the Samurai Story nos coloca na pele de um espadachim que, em uma de suas perambulações, acaba se envolvendo em um problema de dívidas de um ferreiro, Dojima, e a necessidade de saldá-la para reaver sua filha, usada como refém pelos credores. Não sem antes sugerir um casamento como moeda de troca, o nosso herói se compromete a ajudar o ferreiro e acaba descobrindo que a noite é muito mais tenebrosa do que parecia.
A construção do universo narrativo do game ainda traz consigo tramas e sub-tramas que falam de conflitos entre clãs, costumes e crenças, sem perder de vista que, no fim, é uma história intimista e focada na unidade familiar que se constitui entre o ferreiro – e seu inevitável papel de guia – e o protagonista. Nesse sentido, o mérito de Katana Kami está em estabelecer um ambiente bem estruturado sem pretensões megalomaníacas, equilíbrio muito bem-vindo para nos manter alinhados com os objetivos do jogo, que no fim das contas está pautado em saquear um universo de fantasia sombria para liquidar uma dívida quase impagável. Mais tarde, esse contexto será relevante para possibilidades estratégicas do jogador.
Como um todo, o jogo é um RPG (leve) de ação, com visão isométrica, dividido em dois grandes momentos que vão se intercalando com a passagem do tempo: dia e noite. o primeiro serve para gerenciar os recursos e aplicá-los da melhor forma possível, confeccionar armas para si e para os clientes do ferreiro (e ajudar no gerenciamento do negócio), melhorar e/ou comprar equipamentos e se preparar para os momentos de confronto. É também nesse momento onde se criam laços – amistosos ou nem tanto – com os 3 principais clãs presentes no jogo e estimular (ou apaziguar) conflitos entre eles. Outros personagens e missões secundárias também acabam se resolvendo em parte ou completamente nesse momento, mas não é bem esse o foco.
Se envolver nos embates pode não ser tão proveitoso assim, mesmo que o jogo permita que você ataque qualquer NPC com quem encontre. Todavia, saber fazer com que a tensão entre eles fique cada vez mais insustentável ajuda. Afinal, para quem fabrica espadas, nada melhor do que um conflito declarado, certo? Com embates cada vez mais frequentes, as encomendas aumentam, e essa é uma das formas de se acumular dinheiro, sempre olhando para a dívida a ser paga naquela semana. Deste modo, o jogo político e diplomático importa e traz resultados a curto e médio prazos. Para acompanhar o contexto macro, há um providencial mural com notícias atualizadas de como estão estas tretas.
O outro momento do jogo ocorre a noite, quando uma misteriosa passagem para outra dimensão se abre aos pés de uma árvore mítica (chamada Ipponmatsu) e o sistema se torna, em termos bem objetivos e clássicos, uma exploração de dungeon, no melhor estilo Diablo II. Esse mundo é composto por uma infinidade de níveis labirínticos, repletos de inimigos sobrenaturais e criaturas que oferecerão resistência ao avanço do samurai. Ainda que muitos deles tenham um comportamento de guerreiros similar ao do nosso herói, cada tipo de inimigo carrega em si um estilo de luta que lembra as opções que podemos adotar. Mesmo não sendo tão variado assim, demora para aprendermos suas forças e fraquezas e como balancemos tudo isso.
Ao adentrar esse mundo, começamos novamente no nível 1 (e seus parâmetros quanto a quantidade de saúde e de vitalidade) e vamos evoluindo conforme nos aprofundamos. Quanto mais profundo o nível, maior a dificuldade, e também maiores são os ganhos. Na maioria deles, não há volta segura para casa, mas há pontos específicos – normalmente, após um chefão ou uma horda intensa – onde se pode escolher voltar e garantir os ganhos ou arriscar seguir adiante. Em outras palavras, cada noite representa uma quest completa e fechada em si para onde carregamos itens e armas escolhidas e de onde trazemos espólios, os quais é prudente que guardemos antes de retornar. Afinal, de novo, a morte significa perder tudo o que se tem no inventário.
Essa decisão de seguir adiante ou retornar com o que se tem – e, obviamente, o resultado dela – é fundamental para o sucesso em Katana Kami: A Way of the Samurai Story. Afinal, o prazo para se pagar cada parcela da dívida é muito bem estipulado em dias. É necessário ter o dinheiro suficiente em caixa para que os cobradores nos deixem em paz. A questão é que aquilo que se acumula em cada incursão só é definitivamente contabilizado, como dito, no momento em que se volta seguro dela. Ou seja, a morte importa demais. Ainda que não haja um momento de game over por conta de fatalidades, acordar no dia seguinte sem um tostão do que se acumulou pode significar o não cumprimento da dívida, e problemas sérios para continuar avançando na história.
Ao mesmo tempo, seguir apostando na segurança também pode não trazer os ganhos necessários conforme as parcelas aumentam. Então saber quando arriscar níveis mais profundos e quando voltar é fator essencial. A paciência do jogador também acaba sendo testada, porque não foram raras as vezes que arrisquei demais e perdi horas de avanço por morrer em um nível acima das minhas possibilidades. E, para piorar, tudo acaba se embolando em um círculo vicioso. Ao não pagar a dívida em dia, ela se acumula e a tolerância do cobrador diminui. Ao não conseguir armas melhores, o risco aumenta; ao entrar em desespero, a frequência de fracassos também acaba piorando a situação e, por fim, toda a jornada se torna um verdadeiro pesadelo. Prepare-se para decidir recomeçar a campanha do zero em algum momento que tiver feito escolhas erradas.
Esse nível de imersão e engajamento é ainda atrelado aos cuidados para com nosso herói. Cada inimigo armado que derrotamos nos deixa seu equipamento – espadas, arcos, facas e tantos outros – e as vezes outros consumíveis. Ao longo das incursões, há uma infinidade de coletáveis que ajudam a recuperar e aplicar melhorias aos equipamentos e ao próprio personagem, o que nos torna verdadeiros catadores: tudo o que cai vale a pena ser levado consigo e logo esse limite é atingido. Há muito o que se levar e há pouco o que fazer com essas coisas durante cada iteração. É possível recuperar a durabilidade da sua espada desgastada com outras espadas, por exemplo. Mas só. De resto, tudo é temporário até se voltar para casa (vivo, claro).
Para isso, é necessário vencer guerreiros mortos, animais selvagens, criaturas antropomórficas e outros amaldiçoados. Seguindo a tradição samurai nos games, como já tínhamos adiantado aqui no site, temos 3 posturas principais, que podemos chamar de “atacante” – muito ofensivo e mais agressivo,”recebedor”, que se pauta mais no contra-ataque e na evasão, e “quebrador”, onde movimentos sem a espada, como chutes e arremessos, ajudam a superar defesas mais sólidas. É uma postura definida pelo tipo de equipamento utilizado (são mais de 100 espadas distribuídas nessas categorias) e não vai demorar para que tenhamos que aprender quais os tipos de inimigos são mais adequados a cada forma de se jogar. Ainda que se possa ter uma ou outra preferência, é fundamental que se aprenda a manipular cada uma delas da melhor forma possível.
Outro ponto importante e que nem sempre é prático para quem não se força o costume é a mecânica de se devolver a espada à bainha quando não estiver em combate. Saber quando guardar e quando empunhar o equipamento traz benefícios, como ataques mais fortes e movimentos especiais. O mesmo vale para o timing de combate: defender no exato momento do ataque abre espaço para contra-ataques poderosos e muitas vezes mortais, aquilo que o jogo chama de Kiwami, mesmo contra inimigos mais parrudos. Esquiva e o equilíbrio entre os tipos de ataque também são úteis. A soma desses fatores ajuda a trazer mais cadência e estratégia para os combates, e mesmo que você prefira o estilo hack ‘n slash de atuar, fatalmente terá que aprender e se apropriar desses recursos. Definitivamente, esmagar botões não é a melhor forma de se aproveitar (e avançar) em Katana Kami: A Way of the Samurai Story.
É importante destacar também o especial de fúria do jogo, no melhor estilo God of War. Vencendo inimigos, se acumula orbs que, ao encher uma barra específica, liberam o uso do que o jogo chama de Katana Time, um modo que basicamente nos deixa mais fortes, menos vulneráveis e mais rápidos por um período de tempo limitado. E, por fim, há um elemento bem pontual que nos faz entender porque há um botão só para o movimento de nos ajoelharmos: um totem presente em alguns níveis para o qual podemos orar e obter graças (ou punições) especiais. Assim, ao rezar, podemos ficar temporariamente cegos ou amaldiçoados, ou mesmo obter mais XP e equipamentos melhores. Em resumo, são modificadores aleatórios que podem ajudar (ou não) por um tempo.
Essas e outras informações compõem um longo e distribuído tutorial que se divide entre apresentar esse mundo e nossas opções de ação tanto em combate quanto no gerenciamento da jornada. Infelizmente, e como esperado, o jogo não está localizado para o nosso português brasileiro, e a compreensão textual e dos menus é importante, uma vez que mesmo com sistemas de evolução e skills relativamente simplificados (quando comparados a RPGs mais grandiosos), são muito detalhes e ações que demandam compreensão do bom e velho “pra que”, “por que” e “pra quem”. Aliás, menus não são dos mais amigáveis e a organização de itens só não é mais atravancado do que o acesso a eles. Muitas vezes, acessar menus e submenus mais atrapalha do que ajuda, e acaba tirando um pouco do ritmo do jogo.
O mesmo vale para o HUD, que nos garante informações em tempo real do que foi coletado ou do que está no chão, mas que muitas vezes atravessa o campo de visão atrapalhando no combate, principalmente em movimentos de parry, vários inimigos na tela e outros pontos de precisão. Soma-se a isso aquele padrão de ver sombras e contornos através de obstáculos comuns em jogos isométricos e, em vários casos, enxergar e entender o que está acontecendo na tela pode ser um verdadeiro martírio. Não ajudam também as fontes e ícones escolhidas, ainda que elas sejam coerentes artisticamente com a ambientação diegética do game.
Por falar na questão visual do jogo, o traço adotado é diferenciado e busca inspirações estéticas na cultura japonesa, sobretudo nos tons saturados e no estilo de traço que, juntos, lembram pinturas de aquarela, algo ainda mais evidente nos trechos de cut-scenes, que contam com ilustrações estáticas e uma dublagem que beira a caricatura do teatro oriental. Figuras humanas, criaturas e texturas, até pelo ponto de vista adotado, carecem de mais personalidade e a sensação de repetição é uma constante, sobretudo em investidas mais longas. Como cada nova jornada pode durar mais de uma hora, esses padrões reincidentes acabam se tornando cansativos, fazendo com que jogatinas prolongadas sejam menos recomendadas.
Ao mesmo tempo, a construção dos diferentes níveis e ambientes é um misto de ótimas ideias e oportunidades desperdiçadas. Se os mapas são um aglomerado (não muito inspirado) de áreas ligadas por passagens e corredores, a construção visual desses padrões traz novas informações, efeitos de névoa inteligentes, aplicações de luz e sombras coerentes e uma percepção lúdica do espaço que faz muito sentido com esse universo criado. A organização em níveis ajuda a criar atalhos que permitem “pular” de um ambiente para outro sem transições ou passagens bruscas, mas também não deixa de causar a sensação de “fase da noite”, “fase do jardim” e assim por diante.
A trilha sonora, por sua vez, é um verdadeiro deleite e funciona de forma muito adequada para o universo do game. Desde as calmas músicas instrumentais que abusam das cordas típicas desse período histórico às batidas mais intensas em momentos de combate, tudo é muito bem mixado com efeitos sonoros e os diálogos presentes no jogo. Infelizmente, nem tudo é falado e muita coisa funciona só por texto, mas isso acaba incomodando menos que em outros games de conversas mais prolongadas, em parte porque onomatopeias características quebram o silêncio nesses momentos específicos. Importante destacar que games nesse formato tem em si a repetição e o retorno como característica fundamental, mas por vezes o exagero e a falta de incentivo para isso pode ser um divisor de águas entre boas iniciativas e outras nem tanto.
Katana Kami: A Way of the Samurai Story pode ser resumido em um jogo simples, com camadas e mais camadas que o tornam aprofundado o suficiente para envolver o jogador sem forçar uma burocracia exagerada. É uma experiência que valoriza a responsabilidade do jogador – já que tudo importa e traz consequências – e merece ser apreciado com cadência. Katana Kami: A Way of the Samurai StoryTraz um mundo cheio de cores e repleto de referências à cultura e momento histórico onde está baseado e, sim, consegue se diferenciar do que o mercado mainstream tem oferecido diante essa temática, mesmo que traga consigo algumas limitações e probleminhas de design. Certamente, um jogo a se experimentar.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Spike Chunsoft.
Veredito
Katana Kami: A Way of the Samurai Story consegue equilibrar de forma bastante competente uma jogabilidade simples, densa e eficiente com um sistema diferenciado de gestão de recursos e de objetivos. Traz uma história bem direta que tem na ambientação seu maior trunfo. Menus, elementos de tela e mesmo o estilo artístico trazem boas ideias, mas também apresentam alguns problemas, e a repetição da iterações pode cansar mais do que deveria.
Katana Kami: A Way of the Samurai Story manages to balance, in a very competent way, a simple, dense and efficient gameplay with a differentiated system of resource and objective management. It brings a very direct story that has its greatest asset in the setting. Menus, canvas elements and even the artistic style bring good ideas, but they also present some problems, and the repetition of iterations can be more tiring than it should.
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